Arquivo para categoria História da Igreja

BEM-AVENTURADO PAPA JOÃO PAULO I

Em 13 de outubro de 2021, o Papa Francisco aprovou um milagre atribuído ao servo de Deus Papa João Paulo I. Uma vida breve que nos ofereceu três papas num ano e, mais ainda, tornou possível que tivéssemos – agora – três Papas não italianos.

Albino Luciani nasceu em 1912 em Canale d’Agordo, Belluno, e morreu em 28 de setembro de 1978, no Vaticano. Era filho de um operário socialista que tinha trabalhado como emigrante na Suíça. Quando decidiu ir para o seminário, seu pai o admoestou: “Espero que quando te tornares padre ficarás do lado dos pobres, porque Cristo estava ao lado deles”.

João Paulo I, que será beatificado no próximo ano, foi papa apenas 33 dias: não deixou documentos sobre seu pontificado, a não ser nomeações para a Secretaria de Estado, algumas cartas, homilias, mas contribuiu para modificar a imagem do papa, indicando um modo novo – simples, pessoal, evangélico – de ser Papa. Nenhum documento ficou para a história do Papado, mas modificou a imagem papal, deixando um exemplo coerente, permitindo, pelo exemplo, intuir de certo modo como poderia ser seu Pontificado se tivesse tido tempo. Esse novo modo de ser Papa, o exemplo, influiu em seu sucessor, Papa Wojtyla.

Transformou a cerimônia da Coroação papal numa “Celebração de início do ministério de Pastor universal”, como continuarão os sucessores. Quis renunciar à Sédia Gestatória, depois aceitando, devido a pressões curiais.

O Papa Paulo VI e o Cardeal Albino Luciani, o futuro Papa João Paulo I, são fotografados em Veneza em 1972. O Papa Francisco beatificará o Papa Paulo em 19 de outubro durante a Missa de encerramento do Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre a família. O milagre necessário para a beatificação do Papa Paulo envolveu o nascimento de um bebê saudável para uma mãe na Califórnia, depois que os médicos disseram que ambas as vidas estavam em risco. (CNS photo / Giancarlo Giuliani, Catholic Press Photo) (12 de maio de 2014) Ver BLESSED-PAULVI 12 de maio de 2014.
Papa Paulo VI é saudado por Albino Luciani em Veneza.

Como Cardeal, sugeriu a Paulo VI que assumisse uma posição menos rígida sobre a pílula e, como Papa, convidou mais vezes à confiança em Deus “que é pai, mas também mãe”, a não perder nunca a esperança, uma virtude obrigatória para nós crentes, que nos faz caminhar num clima de confiança e de abandono.

O pobre Papa Luciani não dormiu na noite depois da eleição, atormentado por escrúpulos por ter aceito ser Papa e apareceu tocado por todos os 33 dias de sua breve missão. Disse aos Cardeais, brincando sem brincar: “Que Deus perdoe o que fizeram”. Sentiu-se fora de lugar no discurso após a eleição: “Mas é um pouco fora de lugar dar-lhes a bênção apostólica… Todos sois sucessores dos Apóstolos… De qualquer modo está escrito aqui: ‘Em nome de Cristo dou como efusão de sentimento, a vós, as primícias da minha bênção apostólica’… Linguagem um pouco áulica… Paciência”.

Não tinha nenhuma dificuldade de identificar-se com os humildes e com os necessitados. Uma vez falou que “passou fome” em criança, quando conduzia as vacas à pastagem, com o pai emigrado para trabalhar na Suíça.

Como bispo de Vittorio Veneto e como patriarca de Veneza estava acostumado a se encontrar com as pessoas e agora – como Papa – ele temia que não poderia basear sua ação nessa relação: “Num certo sentido estou triste por não poder retornar à vida do apostolado que me dava tanto prazer. Sempre teve dioceses pequenas, meu trabalho era junto dos jovens, os operários, os doentes. Não poderei mais fazer esse trabalho”. Assim falou, em 30 de agosto de 1978, aos cardeais que o elegeram.

Foi definido “o Papa do sorriso”, mas quem o conheceu como cardeal notou que não sorria tão facilmente, como o fazia a cada dia no mês como Papa. Talvez esse sorriso significava seu desejo de mostrar sua solicitude e sua alma de bom pastor em relação a cada pessoa. Como Papa, queria manifestar que deixava suas “dioceses pequenas” e ingressava numa diocese imensa, tendo por auditório o mundo. Receava que seu temperamento voltado para o contato pessoal não o ajudasse. Era um sorriso que manifestava a todos seu desejo de comunicar. Talvez a dor escondida por trás desse sorriso apressou-lhe a morte e hoje o acompanha na memória dos humildes, dos pobres, felizes com o anúncio da beatificação.

Papa João Paulo I abençoa o Cardeal Wojtyla, que será seu sucessor menos de um mês depois.

João Paulo I teve a vida marcada pela simplicidade dos santos. Ordenado bispo por São João XXIII, em 1958, sucedeu a São Paulo VI em Roma e foi sucedido por São João Paulo II. Sua humildade trouxe-nos o encanto dos Santos e ofereceu à Igreja a esperança de uma nova época: o infarto levou do mundo esse homem rico em santidade, rico na pobreza e deixou-nos a imagem de um homem que encheu o mundo de confiança no Pontificado romano a que ofereceu um novo modo de exercício do ministério petrino. Último Papa italiano, deixou-nos a surpresa de um Papa polonês, um alemão e um argentino. Deus seja louvado!


Pe. José Artulino Besen

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PAPA FRANCISCO NOS 500 ANOS DA REFORMA

Francisco visita os luteranos na Suécia

Francisco visita os luteranos na Suécia

No dia 31 de outubro de 1517 Frei Martinho Lutero afixou suas 95 teses sobre as Indulgências na porta da igreja de Todos os Santos em Wittenberg. Foi o início não planejado da Reforma que levou à divisão da Igreja entre Católica e Luterana, levou às guerras religiosas, à fragmentação da Alemanha, à divisão da unidade européia que tinha como fundamento histórico a fé católica. Somente a Itália, Espanha e Portugal permaneceram católicos.

No dia 31 de outubro de 2016, o Papa Francisco e Igrejas luteranas celebrarão um Culto ecumênico pela passagem dos 500 anos do início da Reforma, com o tema da ação de graças, da penitência e do compromisso no testemunho comum. O objetivo é expressar os dons da Reforma e pedir perdão pela divisão perpetuada pelos cristãos das duas tradições. E, pela primeira vez, a celebração não será marcada pelos ataques teológicos, pela culpabilização, pela busca de quem estava/está certo ou errado. Afinal, quando se processa uma divisão entre irmãos na fé, com o ódio pelo outro, há culpa e acerto nos dois lados. Ecclesia semper reformanda é um mandamento que vale para o século XVI e o século XXI. Do mesmo modo que Francisco busca renovar a Igreja católica a partir da fidelidade ao Evangelho, os evangélicos também necessitam de uma renovação interior no confronto com as Sagradas Escrituras.

O encontro celebrativo dos 500 anos da Reforma será em Lund, cidade sueca onde em 1947 foi fundada a Federação Luterana Mundial, que hoje congrega 147 Igrejas protestantes.

Alguns dados biográficos do reformador alemão

Martinho Lutero (Martin Luther) nasceu em 1483 em Eisleben, de pais camponeses. Vencendo as limitações econômicas da família, entre 1501-1505 estudou na Universidade de Erfurt. Em 18 de julho de 1505, após muitas dúvidas e reflexões, entrou no Convento dos Eremitas Agostinianos de Erfurt, onde foi ordenado padre em 1507.

Em 1512, Lutero é superior do Convento Agostiniano de Wittenberg, doutor em teologia e em exegese bíblica, lecionando as Cartas paulinas aos Gálatas e ao Romanos.

Por uma formação religiosa deficiente, onde contava muito o peso e o medo da condenação eterna, Lutero sofria o pavor do inferno, e era escrupuloso. Alcançou a paz interior entre 1512-1513, na famosa Experiência da Torre (Turmerlebnis): após muita oração, Deus lhe permitiu descobrir que a salvação é dada ao homem somente pela fé em Cristo, como puro dom, e não como recompensa pelas obras: “O justo vive pela fé”  (Rm 1,17). Sentiu paz interior e nunca mais a perdeu, mesmo no ardor dos embates em que esteve envolvido.

Frei Martinho Lutero, um homem religioso

Martinho Lutero não era um monge corrupto, degenerado, psicopata, mentiroso, como durante séculos quis ensinar a apologética católica. Foi monge, viveu como monge e morreu casado; não foi anjo, nem demônio, mas testemunha de Cristo. O século XVI, século da Reforma, mostrou com clareza as deficiências da organização eclesiástica e, o que era mais grave, as deficiências na condução da espiritualidade e piedade cristãs.

Hoje, todos reconhecem em Lutero uma autêntica religiosidade. Teve uma experiência pessoal de Deus, um autêntico sentido do pecado e da própria nulidade, que vencia por uma entrega total a Cristo e uma confiança cega nele e em sua redenção. Possuía um sentido trágico da miséria humana, da qual deriva a escassa ou quase nula utilidade das muitas práticas religiosas. Grande apego à oração e uma imensa confiança na graça. A tudo isso, unia um grande amor pelos pobres.

Pela sua índole, pelos seus dotes de pregador, de chefe, de guia, pela vivíssima fantasia, rica em imagens, demonstrava estar convencido de ser enviado por Deus para anunciar uma experiência íntima e transformadora, único caminho de paz e salvação. Lutero tinha sido feito para inflamar as massas populares e convencer e agitar os ouvintes. O dom de comando, nele, se unia a uma irradiação interior e grande sensibilidade pelos outros.

Era dotado de caráter forte, unilateral, impulsivo, forte subjetivismo, com pouca disposição para aceitar mediadores entre Deus e os homens. Autêntica e profunda religiosidade, mas tendência ao autoritarismo e violência. Mesmo reconhecendo nele toda a seriedade religiosa, pode-se afirmar que faltou-lhe uma autêntica humildade, a capacidade de ouvir os outros, a Igreja.

O jesuíta alemão Ludwig Hertling, historiador da Igreja católica, reconhecendo a aventura espiritual de Lutero, afirma que por sua personalidade, força de comando, acentuou no caráter alemão algumas características que se impuseram nos séculos seguintes, até de modo trágico: a autossuficiência, arrogância, orgulho nacional, o sentido dos deveres cívicos.

É fácil e confortável apontar as deficiências de um homem, mas não se pode ignorar que Lutero foi um homem religioso, homem de oração. Sua vida não pode ser confundida com as turbulências da Reforma, onde o desejo de uma fé pura misturou-se com a ambição de príncipes ansiosos para tirar proveito das divisões e apossar-se dos bens da Igreja.

O papa João Paulo II [1], escreveu em 31 de outubro de 1983 : “Os esforços dos evangélicos e católicos que, em grande medida, coincidem nos resultados, permitiram delinear um quadro mais complexo e articulado da personalidade de Lutero e do complexo entrelaçamento das circunstâncias históricas, da sociedade, da vida política e da Igreja na primeira metade do século XVI. Resplandeceu evidente a profunda religiosidade de Lutero, com a sua problemática da salvação eterna vivida com ardente paixão”.

Os estudos do século XX revelaram com clareza a profunda religiosidade de Lutero, homem cujo impulso e paixão era a pergunta sobre a salvação eterna.

Tudo requer uma pesquisa sem preconceitos para se revelar uma imagem justa do reformador, e não somente dele, mas do período da Reforma e das pessoas nela envolvidas, reconhecendo a culpa de uma e de outra parte. Uma atitude de purificação através da verdade permite-nos encontrar uma comum interpretação do passado e, ao mesmo tempo, construir um novo ponto de partida para o diálogo hoje obtido pela clareza histórica.

O estudo dos escritos confessionais evangélico-luteranos encontram sua base sólida naquilo que nos une também depois da separação: a Palavra da Escritura, as Profissões de Fé e os Concílios da Igreja antiga.

João Paulo II, conclui: “Na humilde contemplação do Mistério da divina Providência e na devota escuta daquilo que o Espírito de Deus hoje nos ensina na recordação dos acontecimentos da época da Reforma, a Igreja tende a dilatar os limites de seu amor, para ir ao encontro da unidade de todos aqueles que, através do Batismo, carregam no nome de Jesus Cristo”.

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O drama de Martinho Lutero: como posso me salvar?

Lutero saiu da Igreja após séria luta e sem ter intenção de fazê-lo. Tornou-se reformador na luta contra uma interpretação do catolicismo que de fato era cheia de deficiências. Deixou a Igreja para descobrir aquilo que é o centro da própria Igreja: o primado da graça.

Por que houve a Reforma? Hoje podemos afirmar que ela foi provocada pelos católicos, pois Lutero era católico, monge sério e sincero, que nunca quis deixar de ser católico. Séculos de aversão a Roma, envolvida na política internacional, mergulhada no Humanismo renascentista, a decadência da própria vida católica alemã, com uma hierarquia não livre de máculas morais e corrupções (houve bispos que não celebraram três missas em longo episcopado!), mosteiros decadentes, fizeram com que boa parte da população alemã visse na pregação de Martinho Lutero o renascer do verdadeiro Cristianismo. Isso ajuda a entender porque tantos alemães, desde Carlos Magno fiéis e dóceis ao Papa, tenham aceitado romper a unidade católica.

Bento XVI analisou com empatia a questão central de Frei Lutero[2]: O que não lhe dava paz era a questão sobre Deus, que foi a paixão profunda e a mola mestra de sua vida e de seu caminho. “Como posso ter um Deus misericordioso?”: esta pergunta lhe penetrava no coração e estava por trás de toda sua pesquisa teológica e de toda a luta interior. Para Lutero, a teologia não era uma questão acadêmica, mas a luta interior consigo mesmo, na luta a respeito de Deus e com Deus. “Como posso ter um Deus misericordioso?”. Escreve Bento XVI: “que esta pergunta tenha sido a força motora de todo o seu caminho me toca sempre novamente o coração. De fato, quem hoje ainda se preocupa com isso, mesmo entre os cristãos? O que significa a questão sobre Deus em nossa vida?”.

 A pergunta “qual é a posição de Deus em relação a mim? Como eu me encontro diante de Deus?”, esta palpitante pergunta de Lutero deve novamente, e em forma nova, ser a nossa pergunta, não acadêmica, mas concreta.

O pensamento de Lutero, toda a sua espiritualidade era de todo cristocêntrica: “O que promove a causa de Cristo” era, para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação da Sagrada Escritura. Isto pressupõe que Cristo seja o centro de nossa espiritualidade e que o amor por ele, o viver junto com ele oriente a nossa vida.

A coisa mais necessária para o ecumenismo é, antes de tudo que, sob a pressão da secularização, inadvertidamente não percamos as
grandes coisas que temos em comum, que nos tornam cristãos. O erro da época confessional foi ter visto mais o que separa, e não ter percebido em modo existencial aquilo que temos em comum nas grandes diretrizes da Sagrada Escritura e nas Profissões de fé do cristianismo antigo.

Em sua passagem por Lund, casa mundial do Luteranismo, Francisco nos ensinará a levar adiante, com decisão, o caminho do ecumenismo, da busca da unidade na diversidade.

Pe. José Artulino Besen


[1] Mensagem de João Paulo II ao Cardeal J. Willebrands, Presidente do Secretariado para a unidade dos Cristãos, em 31 de outubro de 1983, por ocasião do 5o centenário de nascimento de Lutero.

[2] Discurso de Bento XVI no encontro com representantes da Igreja Evangélica na Alemanha, em 23 de setembro d 2011, na Sala do Capítulo do ex-Convento dos Agostinianos de Erfurt.

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SÃO JOÃO XXIII – O DULCÍSSIMO PAPA CAMPONÊS

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No dia 28 de outubro de 1958, o Cardeal Patriarca de Veneza Ângelo Giuseppe Roncalli foi eleito papa. Após as homenagens dos cardeais, da Cúria romana, da apresentação ao povo reunido na Praça de São Pedro, dos cumprimentos de familiares e amigos, a noite já ia avançada. Então o fidelíssimo secretário Loris Capovilla lhe pergunta: “Ocorre-lhe mais alguma coisa, enviar algum telegrama?”, e João XXIII responde singelamente: “Agora, façamos a coisa mais simples, meus filho. Tomemos o Breviário e recitemos Vésperas e Completas . Assim foi a vida do Papa canonizado em 27 de abril de 2014. Ocupou os mais altos e significativos postos nos serviços da Igreja, mas nunca perdeu a unidade interior. Em nenhum momento achou que merecesse alguma honraria, pois elas eram sempre fruto da bondade da Igreja. O importante, para ele, era cultivar a alma, a santidade, cumprir seus propósitos de vida formulados durante os Exercíos Espirituais em 1895, no Seminário de Bérgamo e escritos nos cadernos do DIÁRIO DA ALMA . A última anotação no DIÁRIO foi em 20 de maio de 1963. Morreu no 3 de junho seguinte.

Filho de camponeses pobres e de sólida formação cristã, duas pessoas ficaram em sua memória espiritual e humana: o vigário Francisco Rebuzzini e o tio Savério que lhe ensinou as primeiras orações e princípios de vida cristã. Dava-lhe muita alegria observar os dois homens conversando e rezando enquanto caminhavam perto da casa paroquial de Sotto il Monte, o humilde povoado onde nasceu em 25 de novembro de 1881.

João XXIII conservou sempre a fé simples e profunda dos camponeses bergamascos. Suas missões diplomáticas na Bulgária, Grécia, Turquia e Paris, o cardinalato e o supremo Pontificado não complicaram em nada essa fé que o comprometia diariamente e era a causa de sua felicidade e, nela, a humildade e o silêncio tinham lugar privilegiado.

Foi Píer Paolo Pasolini, o famoso poeta e cineasta italiano, que o apelidou de “Dulcíssimo Papa Camponês”. Pasolini estava em Assis em 4 de outubro de 1962, quando lá esteve João XXIII, que tinha empreendido a peregrinação ao Santuário de Loreto e a Assis a fim de colocar sob a proteção de Nossa Senhora e de São Francisco o Concílio Ecumênico que seria inaugurado no dia 6 seguinte. Na verdade, Pasolini estava em Assis para confirmar seu anticlericalismo, sua rejeição ao Papado, queria olhar nos olhos aquele Papa que olhou nos olhos os presidiários romanos, armado apenas de imensa e arguta piedade. Estava no hotel quando, ao som dos sinos, o Papa ia passar. Teve o desejo de levantar-se e o olha-lo, mas venceu e, inexplicavelmente, tomou o livro dos Evangelhos que estava no quarto e leu do início ao fim o Evangelho de Mateus. Quando João XXIII ia se retirando, Pasolini tinha pronto seu filme, o “O Evangelho segundo Mateus”, dedicado ao Papa . O filme é a reprodução literal do Evangelho de Mateus, o Evangelho das Bem-aventuranças.

Na história do mundo a vida de papa Roncalli confirmou o valor atraente da bondade evangélica, que conserva sempre um lugar de honra no Sermão da Montanha: bem-aventurados os pobres, os mansos, os pacíficos, os misericordiosos, os sedentos de justiça, o puros de coração, os atribulados, os perseguidos.

João XXIII não apreciava muitos os livros e artigos a seu respeito, que julgava exagerados, equivocados: “Somente o olhar do Senhor nos vê como somos, e é somente isso o que conta”, respondeu a Indro Montanelli, jornalista que teve o privilégio de entrevista-lo em 1959 .

O que é ser santo?

João XXIII morreu após a primeira Sessão do Concílio, em 3 de junho de 1963. Seria fidelidade à tradição canonizar o Papa que morresse durante um Concílio. E, ao final do Vaticano II, um bispo polonês se levantou para pedir que fosse canonizado ao final da Assembléia conciliar. Em seguida, mais dois arcebispos fizeram o mesmo: o cardeal Stefan Wyszynski e Karol Wojtyla, que foi canonizado no mesmo dia como São João Paulo II. Um, o Santo que veio do mundo camponês e, o outro, o Santo que veio da opressão do Leste europeu. Evidente que poderosos Cardeais da Cúria se opuseram a esse anseio, pois, canonizar João XXIII seria canonizar um modo demasiado humano de ser papa, e isso não seria conveniente.

Com apenas 26 anos, Ângelo Roncalli definiu o que é ser santo: saber anular-se constantemente, destruindo dentro e ao redor de si aquilo que o mundo elogia como causa de louvor; conservar viva no coração a chama de um amor puríssimo para com Deus, acima dos lânguidos amores da terra; dar tudo, sacrificar-se pelo bem dos próprios irmãos, e, na humilhação, na caridade de Deus e do próximo seguir fielmente os caminhos indicados pela Providência que conduz as almas eleitas no cumprimento da própria missão: está aqui toda a santidade. Roncalli foi fiel a esses princípios por toda a longa e movimentada existência. Vida pública e privada. Antes e depois de ser eleito papa. Eleito bispo e papa, escolheu como seu o lema do Cardeal César Barônio: “Obediência e Paz”, duas virtudes que lhe permitiram viver na alegria e na simplicidade e que tanto atraem os estudiosos de sua vida: “a nossa paz é a vontade de Deus”.

O padre Ângelo Giuseppe Roncalli

Em 10 de agosto de 1904 foi ordenado sacerdote, um padre à moda antiga, mas ancorado no terreno sólido da revelação cristã. Quis sempre ser um padre marcado com fogo pela familiaridade com Cristo, preocupado com nada além do nome, do reino e da vontade de Deus, sua alegria.

No dia 24 de maio de 1915 partiu para o serviço militar em Saúde. Estava vivendo o horror da primeira grande guerra. Na véspera escreveu em seu DIÁRIO: “O Senhor dispôs a minha última hora para o campo de batalha? Nada sei; a única coisa que quero é a vontade de Deus em tudo e sempre e a sua glória no sacrifício completo do meu ser”.

Todo o ministério era causa de alegria: recitava a Liturgia das Horas com grande alegria interior, celebrava cada Missa como que mergulhado dentro dela, em êxtase. Era no altar o que era fora do altar: “a pessoa do sacerdote é sagrada”, falou ao clero romano já como papa em 26 de janeiro de 1960. De sua vida de oração brotavam as palavras que dirigia ao povo. Para ele era claríssimo que a autenticidade e a fecundidade de seu sacerdócio dependiam essencialmente de sua santificação pessoal, de sua vida de comunhão íntima com Deus.

Alimentava profunda espiritualidade missionária, o ardente desejo de que todos os povos cohecessem a Jesus. Teve a alegria de trabalhar em Roma na Obra pela Propagação da Fé, entre 1921 e 1925. Mais tarde, escreveu que a “Obra da Propagação da Fé é a respiração de minha alma e de minha vida” . Em 3 de março de 1958, recordando a entrega do Crucifixo para um grupo de missionários no distante 1910, escreveu: “nas conversas e confidências com alguns dos anciãos que retornavam dos campos da evangelização, me sentia como que preso por uma edificação e ternura inefável, que ainda não despertava em mim uma vocação missionária, mas educava meu espírito à admiração por quem se sentia chamado e respondia correndo àquele caminho corajoso e misterioso”.

Após anos de serviço diplomático, entre 1925-1953, comentou que tinha sido um trabalho importante, mas sem comparação com a saborosa e serena alegria da ação missionária, do contato com almas e ambientes diversificados e interessantes que me introduziram num conhecimento mais profundo com o que se refere às orientações e esperanças do Reino de Cristo no mundo.

João XXIII em seu escritório

João XXIII em seu escritório

Os caminhos de Deus

Ordenado padre para o serviço direto com o povo, em 1925 foi chamado pelo Papa Pio XI ao trabalho diplomático, primeiro na Bulgária, depois na Grécia e Turquia e, enfim, na sofisticada Paris marcada pela humilhação da Guerra. Em 19 de março de 1925 foi ordenado bispo. Em comum, essas nações passavam pelas provações da política que humilha os pobres e busca dominá-los.

Até aqui, Roncalli tinha sido um culto e estimado sacerdote, secretário pessoal de Radini Tedeschi, bispo de Bérgamo, com doutorado em Roma, professor de história eclesiástica e de apologética. Descobriu, comentou, traduziu e iniciou a publicação dos 5 volumes das Atas da visita apostólica de São Carlos Borromeu a Bérgamo, em 1575.. Brilhante “carreira eclesiástica”, pode-se dizer.

Agora, sua missão primordial era atender às comunidades católicas búlgaras, gregas e turcas. Procurou ser bispo com coração de padre para seus sacerdotes, participando de seus Exercícios Espirituais, de sua pobreza.

Como bispo e delegado apostólico continuou sua vida sacerdotal e inicia um caminho que o levou à Nunciatura de Paris e ao Patriarcado de Veneza. Seu DIÁRIO DA ALMA não descreve recepções, encargos recebidos, publicações e honrarias: está preocupado com sua alma, com sua santificação, em participar com o proveito do Retiro Espiritual. O cuidado com os pobres, todos os pobres, toma boa parte de seu tempo. Os católicos eram exígua minoria em países ortodoxos e na muçulmana Turquia. O campo de apostolado germinou nele a consciência ecumênica e de diálogo religioso. Concretamente, quase nada conhecia do mundo ortodoxo, menosprezado e esquecido pelo Ocidente católico. A formação sacerdotal não tinha em conta essas comunidades. Isso foi nele contrabançado pela capacidade de encontrar cada pessoa, de conviver com todos. A unidade humana e cristã prevalecia: “Sentia-me irmão deles. Possuem a sucessão apostólica, recebi-os como bispos irmãos. É uma dor não poder ainda celebrar a eucaristia juntos, mas existe a amizade. Abençoamo-nos uns aos outros, um irmão abençoa o outro”, confessou anos depois. Atenágoras, Patriarca ecumênico de Constantinopla, aplicou a João XXIII a passagem evangélica “houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João”.

Alargou os braços da Igreja, reunindo-os num sentimento comum, primeiro de estima, depois de veneração. Fortalecidos por esse afeto, durante o pontificado de João XXIII, os bispos ortodoxos visitavam-no nos tempos de opressão dos regimes comunistas, vinham com a confiança de filhos, filhos de uma Igreja irmã, a pedir socorro. Suas viagens a Roma era verdadeiras visitas ad limina Petri . Também como a irmãos foi seu relacionamento com o povo turco, muçulmano. Eram irmãos. Sua espiritualidade fez com que entendesse sempre mais o diálogo ecumênico e religioso como via pacis, via charitatis, via veritatis: paz-caridade-verdade.

A experiência deplomática e sacerdotal abriu-lhe os horizontes que levaram ao Concílio Ecumênico do Vaticano II. Acrescente-se a isso seu estar próximo das pessoas e o encontro com os mais pobres: ele nasceu de uma família pobre. Nos anos que vão de 1939 a 1945 fez o possível para socorrer as vítimas da guerra, de modo todo especial se empenhando na salvação de milhares de judeus ameaçados de extermínio. Era Núncio em Paris quando, em 1953, Pio XII o escolheu para Cardeal e Patriarca de Veneza. Estivera 28 anos fora de sua Itália e agora, para sua felicidade, era padre e bispo, podendo dedicar-se exclusivamente ao bem das almas. Por cinco anos foi o vigário de Veneza, abraçando a todos, católicos, não católicos, não-crentes. Estava feliz nessa missão, a cada dia se preparando espiritualmente para uma boa morte quando, em 28 de outubro de 1958, foi eleito Papa, escolhendo João como nome, e a missão de preparar os caminhos do Senhor.

Dia 27 de abril de 2014 - Com a presença de Bento XVI, Francisco canoniza João XXIII e João Paulo II

Dia 27 de abril de 2014 – Com a presença de Bento XVI, Francisco canoniza João XXIII e João Paulo II

Um Anjo com o nome de João

João XXIII continuou sendo o mesmo seminarista que seguia os propósitos escritos em 1895 nos Caderninhos que lia com freqüência para seus exames de consciência. As grandes recepções, o afeto que o mundo lhe consagrava, a fama, o Concílio, nada podia distraí-lo do cuidado com sua alma. Continuava a viver a devoção a Nossa Senhora, São José, São Francisco Xavier, recitando as orações diárias de sua juventude. Pode ser incluído entre as almas eleitas nas quais o pecado não conseguiu ter nenhuma influência.

Nunca, em nenhum dia, mesmo como Papa, esqueceu suas origens humildes, seu tio Savério, o povo de Sotto il Monte. Loris Capovilla, quase centenário e agora Cardeal, afirma : “Ângelo Giuseppe Roncalli, da infância ao final de sua vida terrena, foi sempre a mesma pessoa: um cristão que levou a sério as promessas batismais; um cristão que sacerdote primeiro, depois bispo, cardeal e Pontífice, viveu sempre no altar entre um livro, o da divina revelação, e o cálice que é compêndio celeste que nos faz filhos de Deus”.

O Cardeal Capovilla, agora residindo em Sotto il Monte, não aprecia que se identifique João XXIII com o apelativo “Papa BOM”, porque muitos o entendem em sentido até pejorativo como Papa Bonachão, que não enxergava a realidade, o mal presente no mundo, o mestre do bom humor. Não se pode folclorizar esse homem, o Papa do diálogo, do Concílio, do Ecumenismo, da Mater et Magistra e da Pacem in terris.

Papa Roncalli foi homem de princípios, de clara visão da realidade, rigoroso no seguir as normas, príncipe da paz nos conflitos da Guerra fria. Um Papa que introduziu na visão eclesial os “sinais dos tempos”, isto é, ser fiel à Igreja mas enxergando sempre os novos horizontes históricos, um homem alimentado pela esperança e não agindo com pessimismo, que conhecia as dificuldades e os obstáculos.

Para o cristão, a fé é anúncio de salvação, de conversão do homem às coisas de Deus e a missão do sacerdote é encorajar as pessoas a medir-se com as situações, a empenhar-se, a trabalhar. Era uma pessoa firmíssima que sabia que sem clareza não se realiza o diálogo e que falar com todos não significa ceder.

No final de setembro de 1962, menos de 15 dias antes da abertura do Concílio, os médicos diagnosticaram a doença que o levaria à morte alguns meses depois: um câncer que lhe provocava muitas dores. Em 11 de outubro, após a abertura do Vaticano II, confidencia ao secretário: “Durante a leitura do discurso olhava os que me estavam vizinhos e pedia ao Senhor que ele falasse a cada um dos presentes”. E à pergunta “Como se sente?”, respondeu “Com aquilo que hoje o Senhor me concedeu devo sentir-me bem”.

Alma de criança e de gigante, de camponês provado pelas glórias humanas, repreendeu Loris Capovilla que chorava seu fim de vida: “Por que chorar? Esse é um momento de alegria, um momento de glória”. Tinha vivido 82 anos a espera do encontro com o Senhor.

E o mundo inteiro chorou no dia 3 de junho de 1963, quando morreu João XXIII, a quem a Igreja venera e invoca com o nome de São João XXIII.

Pe. José Artulino Besen

NOTAS

  1. Saverio Gaeta. Giovanni XXIII – uma vita di santità. Milano: Mondadori, 2000, p. 200ss.
  2. Foi publicada nova edição em português pela Editora Paulus, em 2000. O DIÁRIO é o relato de seu caminho de santidade, da busca incessante de fazer a vontade de Deus. Ele mesmo escreveu: “A minha alma está mais nestas folhas do que em qualquer outro escrito meu”.
  3. Zizola, G. Giovanni XXIII. Sotto il Monte: Servitium Editrice 1998, , p.142-144.
  4. Montanelli descreveu suas impressões no Corriere della Sera de 29 de março de 1959.
  5. Nutria grande ternura pelo Pontifício Instituto das Missões-PIME e pela memória de seu fundador Dom Ângelo Ramazzotti, que gostaria de ver canonizado. Hoje, os padres do PIME conservam e alimentam a memória de João XXIII em Sotto il Monte.
  6. Kiril Plamen Kartaloff. La sollecitudine ecclesiale di monsignor Roncalli in Bulgária. 2014: Città del Vaticano. Entrevista com o autor por Antonella Pilia , em 28 de março de 2014.
  7. LUOGHI DELL’INFINITO, 7 di aprile 2014 – numero speciale.

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SÃO JOÃO PAULO II – CONTEMPLAÇÃO E AÇÃO

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As aclamações e faixas com o “Santo súbito”, na Liturgia exequial de 2005, significaram o reconhecimento cristão e popular da santidade pessoal de Karol Wojtyla. Suprimindo os tempos de espera para a causa de beatificação, foi rápida a conclusão dela.

No desenrolar do processo de beatificação e canonização de João Paulo II foram ouvidos, sob juramento, 114 testemunhas: 35 cardeais, 20 arcebispos e bispos, 11 sacerdotes, 5 religiosos, 3 religiosas, 36 leigos católicos, 3 não católicos e um judeu.

Dado realçado na figura do Papa pelos leigos foi a libertação dos medos, dos condicionamentos, do sentimento de decadência da Igreja. Um guia excepcional, muito pessoal e carismático, com sua personalidade substituindo faltas das instituições e das pessoas. Um Papa corajoso, uma personalidade que arrastava multidões.

Também foram salientados seus gestos originais da Jornada Mundial de Assis, da visita à Sinagoga de Roma, à mesquita dos Omíadas em Damasco e a renúncia aos privilégios da Concordata de 1929 entre o Vaticano e a Itália, as grandes Celebrações do Ano 2000. Um depoimento severo, e quase solitário, foi dado pelo Cardeal Martini (1927-2012), de Milão, que julgava ser prudente deixar mais tempo passar. Entre os pontos que salientou e que depunham negativamente a respeito do Papa Wojtyla, podemos citar: escolhas não sempre felizes de bispos e arcebispos, escolha não as melhores de colaboradores sobretudo nos últimos tempos, o excessivo apoio aos Movimentos ao invés do apoio às Igrejas locais, seu “imprudente” colocar-se no centro das atenções, especialmente nas viagens, disso resultando obscurecida a missão da Igreja local e do bispo, ao mundo dando a impressão de ser o “bispo do mundo”. Martini afirmou ver no Papa um corajoso homem de Deus, capaz de grande recolhimento mesmo no tumulto das atividades, sua dedicação total à Igreja, mas, talvez tivesse sido prudente retirar-se do ministério petrino quando a doença se agravou e forças retrógradas assumiam o governo central da Santa Sé. Aqui devemos incluir também o sofrimento que infligiu a Dom Hélder Câmara (1909-2009) e à Igreja de Olinda-Recife, impondo como sucessor um bispo cuja missão parecia ser negar a herança cristã desse homem de Deus.

O teólogo e ex-abade de São Paulo fora dos Muros, Giovanni Franzoni, citou, em seu depoimento, aquelas atitudes de João Paulo II a seu ver negativas: a frieza com que recebeu o arcebispo mártir de Salvador Dom Oscar Romero (“Nunca me senti tão sozinho como em Roma”), em 1979, recebendo o conselho de trabalhar mais de acordo com o Governo. No ano seguinte, o santo pai dos pobres e defensor dos injustiçados foi martirizado enquanto celebrava a Missa. Franzoni também não julgou profética a atitude papal de ignorar os escândalos financeiros no Vaticano, os casos de pedofilia no clero, a dureza na dispensa do ministério dos padres egressos. Certamente o Papa sempre agiu no desejo firme de proteger o bom nome da Igreja, para não dar aos fiéis motivo de escândalo. Além disso, tinha vivido na Polônia as calúnias levantadas pelo regime comunista contra padres e bispos: não seria esse o caso? Infelizmente, não era.

Nem Martini, nem Franzoni, duvidam da santidade pessoal de Wojtyla, mas se perguntam se é possível, ou recomendável, separar a pessoa do Papa da missão exercida.

João Paulo II – a vida a serviço de Deus

Desde jovem, foi homem de profundíssima vida de oração e isso era tão visível que algum colega escreveu na porta de seu quarto de seminarista “Futuro santo”. Todas as suas decisões na vida concreta eram assumidas à luz de sua relação com Deus, e essa relação lhe proporcionava uma confiança enorme e uma enorme coragem.

Em seu testemunho, Joseph Ratzinger (Bento XVI) declarou “- “Que João Paulo II era um santo, durante os anos de colaboração com ele, se tornava cada vez mais e mais claro para mim. (…) Se doou com uma radicalidade que não pode ser explicado de outro modo. (…) Seu empenho era incansável, e não apenas nas grandes viagens, cujos programas eram cheios de eventos do início ao fim, mas também no dia a dia, desde a Missa matutina até tarde da noite”. “A espiritualidade do Papa foi caracterizada principalmente pela intensidade das suas orações, profundamente enraizada na celebração da Santa Eucaristia e realizada juntamente com toda a Igreja, com a recitação do breviário. (…) todos nós sabemos do seu grande amor pela Mãe de Deus. Doar-se totalmente a Maria significava ser, com ela, totalmente do Senhor”.

De acordo com o Papa emérito, neste contexto deve ser compreendida a santidade de João Paulo II: “Somente a partir da sua relação com Deus é possível compreender o seu incansável empenho pastoral”.

Mons. Slawomir Oder, postulador do processo de canonização, descreve a santidade de João Paulo II a partir da sua relação íntima com Deus e Nossa Senhora: uma relação que nem todos conseguiam entender e achavam até estranha. “Às vezes, durante a oração mariana, o Papa parecia em êxtase, desligado do contexto circundante, como num encontro. Ele vivia uma relação pessoalíssima com Nossa Senhora”. Para algumas testemunhas, quando João Paulo se dirigia à Virgem Maria não falava com alguém distante, mas, com alguém próximo, a seu lado.

Seu segredo de santidade era sua vida interior, de oração. O próprio João Paulo II sugeriu a chave para o conhecerem: “Muitos tentam me conhecer olhando de fora, mas eu só posso ser conhecido de dentro, do coração”. Alimentava relação íntima com Deus, que se realizava na oração incessante, fazendo, muitas vezes, com que deixasse intacta a cama e preferisse passar a noite no chão, imerso em oração, e isso apesar do cansaço das viagens, da progressão da doença e da fragilidade física.

Mons. Oder refere um fato concreto: “no final de uma das últimas viagens apostólicas, foi quase arrastado para o quarto pelos seus colaboradores. Os mesmos colaboradores, na manhã seguinte, encontraram a cama intacta, porque João Paulo II tinha passado toda a noite em oração, de joelhos no chão. Para ele, recolher-se em oração era essencial, tanto que, nos últimos meses de vida, ele pediu no quarto um espaço para o Santíssimo Sacramento. Sua relação com nosso Senhor era verdadeiramente extraordinária”.

Wojtyla nutria um relacionamento íntimo com o Cristo vivo, especialmente na Eucaristia, de onde vinha tudo aquilo que vimos nele como fruto de extraordinária caridade, zelo apostólico, paixão pela Igreja, amor pelo Corpo místico. Numa palestra em que estive presente, Dom Luciano Mendes de Almeida comentou que aconteceu presenciarem o Papa, na ação de graças após a Missa, na sacristia, estar prostrado no chão, em sua preferida posição de cruz (braços estendidos) e falando em voz alta, num profundo diálogo espiritual com o Senhor.

O jornalista e historiador Vitório Messori, que teve o privilégio de contata-lo pessoalmente, assim se expressou: “Diria que no caso de Wojtyla nem se pode falar de ‘homem de fé’, pois está possuído pela certeza. Não tem necessidade de crer: ele vê. Falando com ele, tem-se a impressão de que esteja imerso numa espécie de visão. Aquilo que vê não o espanta, parece-lhe natural e não fonte de dúvida. Não se pode explicar seu pontificado se não se leva em conta esse aspecto do homem: cada pensamento e cada ato fincam raízes na contemplação e na oração”.

Seu identificar-se com Cristo significou também estar com Ele crucificado, ver o aniquilamento das energias, forças, carisma de comunicação que marcaram o início do Pontificado em 1978. O dia 13 de maio de 1981 marcou a transição de um Pontificado do Papa vigoroso para o Pontificado do Papa humanamente fragilizado: os tiros que recebeu na Praça de São Pedro significaram a progressão no caminho da Cruz. Na Carta apostólica Salvifici Doloris, de 1984, convidava a Igreja a penetrar no sentido salvífico do sofrimento de Jesus Cristo, sofrimento vencido pelo amor. João Paulo II aprofundava a vivência do sofrimento que aniquila as forças físicas, mas, liberta as forças espirituais. Em sua Carta Novo Millennio Ineunte, de 2001, convida a Igreja a contemplar a face de Cristo em sua dor sem medida e em sua glória sem fim.

Impressiona o número de Mártires beatificados e canonizados por ele: os que derramaram o sangue por Cristo receberam estatuto de glória, neles incluídos os martirizados pelos regimes comunista, nazista, ditatoriais e inimigos da fé cristã. Carregando sua cruz, o Papa nos fez olhar para tantos homens e mulheres que não fugiram da morte no testemunho da fé no Senhor. O século XX foi o século dos mártires tanto católicos como ortodoxos, anglicanos e evangélicos, escreveu na Tertio Millennio. E o século XXI continua a sê-lo.

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João Paulo II – o retorno à Casa do Senhor

O dia da morte dos santos é seu dies natalis, nascimento para a eternidade. E esse dia chegou para João Paulo II quando tinha vivido 84 anos, dos quais 57 de sacerdócio, 47 de episcopado e 27 de pontificado.

Servimo-nos de algumas palavras do doutor Renato Buzzonetti, médico que o acompanhou até os últimos instantes e narrou as últimas horas do Papa no livro-entrevista “Accanto a Giovanni Paolo II” (publicado na Itália pela Editora ARES):

“Na quinta-feira, 31 de março de 2005, por volta das 11 horas da manhã, enquanto celebrava a Missa na capela privada, o Santo Padre sentiu um tremor intenso, seguido por uma séria elevação da temperatura e por um gravíssimo choque séptico. Graças à habilidade dos reanimadores, a situação crítica foi controlada e dominada mais uma vez.

Perto das 17 horas, foi rezada a santa Missa ao pé da cama do Papa, que aos poucos emergia do choque. Na Consagração, o Papa levantou fracamente o braço direito, duas vezes, em direção ao pão e ao vinho. Tentou bater no peito com a mão direita no momento do Agnus Dei. Depois da Missa, a convite de Mons. Stanislaw, os presentes beijaram a mão do Santo Padre. Ele chamou as freiras pelo nome e acrescentou: “Pela última vez”. Depois, sendo quinta-feira, o Santo Padre quis comemorar a hora de adoração eucarística: leitura, recitação dos salmos, cantos entoados pela irmã Tobiana.

Na sexta-feira, 1º de abril de 2005, após a Missa concelebrada por ele, o Santo Padre pediu, às 8 horas, para fazer a Via sacra, fazendo o sinal da cruz em cada uma das 14 estações. Participou da recitação da terceira hora do Ofício divino e, às 8:30h, pediu para ouvir a leitura de passagens da Sagrada Escritura.

No sábado, 2 de abril de 2005, foi celebrada a santa Missa ao pé da cama do Santo Padre. Ele participou com atenção. No final, com palavras arrastadas e quase ininteligíveis, João Paulo II pediu a leitura do evangelho de São João, que o Pe. Styczen fez devotadamente, lendo nove capítulos. Homem contemplativo, com a ajuda dos presentes, o Papa recitou as orações do dia até o Ofício das leituras do domingo que se aproximava.

Por volta das 15h30, o Santo Padre sussurrou para a Irmã Tobiana: ‘Deixem-me ir para o Senhor…’, em polonês. Foram suas últimas palavras, o seu ‘consummatum est’ (Jo 19, 30). Ele não queria atrasar esse encontro com o Senhor, esperado desde os anos da juventude. Foi para isso que ele tinha vivido. Aquelas palavras eram de expectativa e de esperança, de renovada e definitiva entrega nas mãos do Pai, seu TOTUS TUUS definitivo.

Depois das 16 horas, o Santo Padre foi adormecendo e perdendo gradualmente a consciência. Por volta das 19 horas, ele entrou em coma profundo e em agonia. O monitor registrava o esgotamento progressivo dos parâmetros vitais. Às 20 horas, começou a Missa celebrada aos pés da cama do Pontífice que falecia. Cantos poloneses se entrelaçavam com os cantares que subiam da Praça de São Pedro, lotada. Uma pequena vela brilhava sobre o criado-mudo, ao lado da cama.

Às 21:37h, o Santo Padre morreu. Depois de poucos minutos de atônita dor, foi entoado o Te Deum em língua polonesa e, da Praça, de repente, viu-se iluminada a janela do quarto do Papa. A morte de João Paulo II às 21,37 horas deste sábado coincidiu com as vésperas da festa litúrgica da Divina Misericórdia”.

A grandeza dos santos está em buscar sempre a Misericórdia que regenera a vida. Eles não acertaram em tudo o que fizeram, porque eram humanos, mas souberam ser conduzidos pela graça.

O Bem-aventurado João Paulo II cometeu erros, ou equívocos, no exercício do ministério papal, boa parte deles fruto de escolhas que fizera na Cúria romana e de bispos cujos conselhos ouvia. Nada disso tira o esplendor de sua vida, e sim, manifesta como Deus é admirável nos seus santos. Seu testemunho de vida fiel e corajosa na opressão comunista de sua Polônia natal, a perda da mãe, pai, irmão, sua confiança inabalável no Senhor e na intercessão de sua Mãe Maria, seu amor intransigente pela Igreja e pela humanidade tornaram justo que o invoquemos como São João Paulo II a partir de 27 de abril de 2014.

Pe. José Artulino Besen

 

 

 

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SÃO JOSÉ DE ANCHIETA – O APÓSTOLO DO BRASIL

São José de Anchieta - Alfredo Cherubino - 2014

São José de Anchieta – Alfredo Cherubino – 2014

José de Anchieta nasceu na ilha de Tenerife, no arquipélago das Canárias, em 19 de março de 1534. Era filho de Juán López de Anchieta, um revolucionário que tomou parte na revolta dos Comuneros contra o Imperador Carlos V da Espanha, e grande devoto da Virgem Maria. Descendia da nobre família basca Anchieta (Antxeta). Sua mãe chamava-se Mência Dias de Clavijo e Larena, natural das Ilhas Canárias,filha de cristãos-novos (judeus convertidos). Um seu tataravô, que devia ser um fervoroso judaizante, foi queimado pela Inquisição [1]. O avô materno, Sebastião de Larena, foi um judeu convertido do Reino de Castela, também perseguido pela Inquisição.

Com 14 anos de idade mudou-se para Coimbra, em Portugal, onde foi estudar filosofia no Colégio das Artes, anexo à Universidade de Coimbra. Se era espanhol, por que em Portugal? A ascendência judaica foi determinante, uma vez que na Espanha, à época, a Inquisição era mais rigorosa.

Em 1551 ingressou na Companhia de Jesus como Irmão. O Pe. Manuel da Nóbrega, Provincial dos Jesuítas no Brasil solicitou mais braços para a evangelização e José de Anchieta foi um dos indicados. Chegou ao Brasil em 1553, com apenas 19 anos. Entusiasmado, Anchieta logo pôs-se a estudar o tupi, que aprendeu em seis meses, e consagrou sua vida ao trabalho de evangelização. Sua ação missionária se estendendo de São Paulo à Bahia.

Participou da fundação, no planalto de Piratininga, do Colégio de São Paulo, do qual foi regente, em 25 de janeiro de 1554. Ali nascia a cidade de São Paulo, que ele descreve no mesmo ano em uma carta ao fundador Santo Inácio de Loyola: De janeiro até o presente se fez ali uma pobre casinha feita de barro e palha com catorze passos de comprido e doze de largo, moravam bem apertados os irmãos. Ali tinham escola, enfermaria, dormitório, refeitó­rio, cozinha e despensa (…). As camas eram redes, os cobertores o fogo.

Para mesa usavam folhas de bananas em lugar de guardanapos (…). A comida vem dos índios, que nos dão alguma esmola de farinha e algumas vezes, mas raramente, alguns peixinhos do rio e, mais raramente ainda, alguma caça do mato (…). Todavia não invejamos as espaçosas habita­ções, pois Nosso Senhor Jesus Cristo dignou-se morrer na cruz por nós.

Outra carta indica a data da fundação: 25 de janeiro do Ano do Senhor de 1554 celebramos, em paupérrima e estreitíssima casinha, a primeira missa, no dia da conversão do Apóstolo São Paulo, e, por isso, a ele dedicamos nossa casa.

Cuidava não só de educar e catequizar os aborígenes, mas foi igualmente incansável defensor deles, protegendo-os dos abusos dos colonizadores portugueses que os queriam como escravos e, não raro, se amancebando com mulheres índias. Descendo a serra, evangelizou o litoral sul de São Paulo, passando por Itanhaém e Peruíbe.

Mediador da paz em Iperoig

Padre Manuel da Nóbrega percebeu a facilidade de Anchieta para aprender línguas, de se comunicar com os índios e sua resistência física. Não hesitou, no ano de 1563, em levá-lo junto para as negociações de paz entre os índios tamoios e os colonos portugueses da região de Ubatuba e da Guanabara onde, oito anos antes, os franceses tinham se estabelecido, e se aliaram aos tamoios contra os tupis e os portugueses.

Várias tentativas de expulsar os invasores tinham resultado num impasse, com os dois lados combatendo o tempo todo. Os indígenas de Iperoig – hoje Ubatuba – foram convencidos a se aliar aos da Guanabara, formando a Confederação dos Tamoios.

O governador Mem de Sá encarregara Nóbrega de tentar fazer os tamoios de Ubatuba desistirem dessa aliança. Pe. Anchieta entrou nas aldeias falando em voz alta, como era costume dos índios, em perfeito tupi, demonstrando autoridade. Em pouco tempo ele e Nóbrega puderam construir um pequeno altar na cabana que os abrigava. Anchieta começou a fazer pregações em tupi, abrindo o caminho para evangelizar a tribo.

Tendo Anchieta como intérprete, Nóbrega tratava da paz e ficou sabendo que os tamoios também queriam a paz. Estavam cansados de perseguir e matar portugueses, mas nada tinham a reclamar dos franceses da Guanabara, que lhes davam armas, ferramentas e roupas. O único obstáculo à paz eram os tupis, inimigos dos tamoios e aliados dos portugueses. Vivendo em clima de perigo iminente, Nóbrega e Anchieta ficaram isolados do mundo: os navios em que tinham vindo estavam na Guanabara, onde também se tentava um acordo. E permaneciam sob constante ameaça dos índios mais exaltados, irritados com o simples fato de a tribo ter recebido os dois jesuítas amigos dos portugueses.

Logo Anchieta ficou inteiramente só, como refém, enquanto Nóbrega voltou a São Vicente para finalizar o tratado de paz. Anchieta iniciou a escrever nas areias de Iperoig e a decorar os versos de um longo poema em latim dedicado à Virgem Maria, com 3.000 hexâmetros,  4.172 versos. Foi a primeira epopéia escrita na América e Anchieta o escreveu em cumprimento de um voto: que a Virgem Maria o protegesse para não cair na tentação da carne, tendo diante de si índias nuas oferecidas por chefes. Venceu a tentação. O poema é um completo Tratado mariológico onde, ao lado da oração à Virgem, têm lugar a apologética, a história da Salvação, e profundas revelações de sua vida interior. Significativo foi incluir todo o texto do Cântico dos Cânticos, que sabia de memória. É a teologia mística de serviço de Deus por amor, percorrendo os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, nas palavras do Pe. Murillo Moutinho, SJ [2]. Assim podemos ler quando fala à Chaga de Jesus:

Deixa-me entrar no peito aberto pela lança ir morar no coração de meu Senhor, / por esta estrada chegarei até às entranhas de seu amor piedoso; / aí farei meu descanso, minha eterna morada. / Aí afundarei os meus delitos / no rio de seu sangue, /  e lavarei as torpezas de minh’alma, /  nesta água cristalina. Nesta morada, neste remanso, / o resto de meus dias, quão suave será viver, / aí por fim, morrer!”.

E a beleza de sua espera do último dia:

Minha alma agitada, em meio, tem sede de ti, / torrente abundante / de prazer eterno! / Feliz o dia em que me saciará, /  como em rio transbordante, / a Mãe e o Filho com o seu amor!”.

Terminado o cativeiro, transcreveu de memória o poema inteiro.

Por fim a paz foi acertada. Depois de cinco meses como refém, Anchieta partiu com uma ponta de tristeza: sentia deixar desamparadas as almas que estava conquistando para Cristo. Os índios também não esconderam sua melancolia pela partida do pajé branco que falava com Deus, lhes ensinava a doutrina cristã e tratava de suas doenças.

No mesmo ano de 1563, o perigo da morte, com a qual Anchieta convivera diariamente em Ubatuba, voltou a ameaçar o jesuíta e os índios do Planalto de Piratininga: em sua volta, esperava-o a epidemia de varíola, espalhada pelos europeus, e que mataria trinta mil índios em toda a costa brasileira.

Os férteis campos de Piratininga logo se transformaram num vasto hospital a céu aberto. Nessa ocasião, Anchieta valeu-se de conhecimentos medicinais que possuía e do uso de ervas nativas que tinha descoberto [3]. Nos casos mais graves, recorria aos sangramentos – em média de dez por dia -, que apavoravam os índios, já bastante assustados pela doença que nunca tinham visto.

Em 1566 foi enviado à Bahia com o encargo de informar o governador Mem de Sá do andamento da guerra contra os franceses, possibilitando o envio de reforços portugueses ao Rio de Janeiro. Por essa época foi ordenado sacerdote, aos 32 anos de idade.

No ano de 1569, Anchieta fundou a povoação de Iritiba ou Reritiba, atual Anchieta, no Espírito Santo e ainda dirigiu o Colégio do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573, e onde tinha fundado a Santa Casa de Misericórdia. Em 1577 foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos. Nessa honrosa e delicada função percorreu o imenso território brasileiro de São Paulo ao Recife, constituindo-se sua grande preocupação o cuidado dos enfermos e moribundos. Como Provincial enviou ao Paraguai os primeiros missionários que formariam o núcleo inicial das famosas Reduções Jesuíticas.

Em 1587 retirou-se para Reritiba (Anchieta, ES), mas teve ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas em Vitória do Espírito Santo, até 1595.

Evangelizador, catequista, literato e santo

Para a catequese, os padres compuseram cantigas em tupi e colocaram letras cristãs em músicas indígenas. Além disso, serviram-se de danças e teatros que comunicavam de modo compreensível a mensagem cristã. As crianças aprendiam os cantos e danças e depois os retransmitiam aos adultos. “Com a música e a harmonia eu me atrevo a trazer a mim todos os indígenas da América”, escreveu o Pe. Manoel da Nóbrega. Um método de inculturação criticado pelo primeiro bispo do Brasil, Dom Pedro Fernandes Sardinha e que lhe valeu uma admoestação da Inquisição; respondia às ameaças com “Acabarei com as Inquisições a flechadas”.

Todo o trabalho missionário possibilitou que até 1600 tivessem sido batizados 100 mil índios brasileiros. Os jesuítas apenas batizavam aqueles que superavam as rigorosas etapas de um prolongado catecumenato. E mais não foi feito porque o destino dos índios era o cativeiro e a morte nas fazendas aonde eram levados para o trabalho forçado.

Pe. José de Anchieta, o “Apóstolo do Brasil”, fundador de colégios e cidades, missionário incomparável, foi gramático, poeta, teatrólogo, historiador e fino redator de cartas. O intenso apostolado não o impediu de cultivar as letras, compondo seus textos em quatro línguas – português, castelhano, latim e tupi, tanto em prosa como em verso. O movimento de catequese influenciou seu teatro e sua poesia, resultando na melhor produção literária do Quinhentismo brasileiro. Sua vasta obra só foi totalmente publicada no Brasil na segunda metade do século XX. No início do 3º. milênio tem início uma avaliação positiva de sua obra, com o reconhecimento de seu valor literário por parte da crítica.

Sua primeira peça, “Pregação universal”, escrita por sugestão de Pe. Manoel da Nóbrega, foi encenada pela primeira vez em 1567. O título “universal” se referia às três línguas usadas, tupi, português e espanhol. Escreveu 11 peças teatrais onde, ao lado inseparável da finalidade catequética e evangelizadora, percebe-se qualidade literária, tendo como modelo a forma de Auto religioso da Idade Média, escrito em versos [4]. Dessas encenações, Pe. Fernão Cardin cita um “artista”, o índio Ambrósio Pires, em 1585, no papel de Anhangá, um diabo, na peça “A Aldeia de Guaraparim”: “A esta figura fazem os índios muita festa, por causa de seus gatimanhos e trejeitos”.

O Brasil lhe deve a primeira gramática da língua tupi, com a qual, praticamente, criou uma nova língua, a “língua geral”: a “Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil”, impressa em Coimbra em 1595, já havendo a versão manuscrita desde 1556, no Colégio da Bahia. É a primeira gramática contendo os fundamentos da língua tupi com suas variantes [5].

O trabalho de Anchieta foi decisivo para a implantação do catolicismo no Brasil. Com seu conhecimento e sua fé, percorreu a pé, a cavalo, em embarcações, boa parte do território brasileiro de São Paulo ao Recife. Além de abrir caminhos que se transformariam em estradas, contribuiu para manter unificado o país nos séculos seguintes. Lançou os fundamentos da catequese e educação dos jesuítas no Brasil e começou a reverter o quadro iniciado desde o descobrimento, em que os nativos eram vistos apenas como propriedade da Coroa e, como tal, passíveis de serem escravizados. Defendeu sua dignidade de filhos de Deus. Com seus dotes inatos de comunicador, conseguiu com o indígena um amplo entendimento.

Por todos admirado como santo e milagroso, cansado das viagens, enfraquecido, em 9 de junho de 1597 Deus o chamou em Reritiba, onde residia desde 1587. A campanha para a sua beatificação foi iniciada na Capitania da Bahia em 1617, mas passou pelas vicissitudes de sua Ordem e não teve continuidade devido à perseguição de Pombal que expulsou os jesuítas do Brasil em 1759 e à supressão da Companhia de Jesus em 1773, sendo restaurada em 1814. O Apóstolo do Brasil foi declarado bem-aventurado pelo Papa João Paulo II em 22 de junho de 1980 e canonizado por Francisco em 3 abril de 2014.

Hoje, muitas pessoas procuram percorrer o caminho “Os Passos de Anchieta”, que resgata o trecho de 105 quilômetros compreendidos entre Anchieta e Vitória, e que José de Anchieta percorria regularmente duas vezes por mês, o denominado “caminho das 14 léguas”. Anchieta vencia a distância – frequentemente na dianteira – na companhia dos guerreiros temiminós que o acompanhavam na missão de cuidar do Colégio de São Tiago, erguido num platô da Vila da Nossa Senhora de Vitória, hoje transformado no Palácio do Governo, na cidade de Vitória do Espírito Santo, e onde jazem parte de seus restos mortais.

Essa “energia” de Anchieta incluía um físico frágil, menos de 1,60 metro e sofrendo fortíssimas dores nas costas, que poderiam ser provocadas pela tuberculose óssea. A doença já tinha se manifestado em Coimbra e, na tentativa de aplacar a dor, usava cintas apertadas, o que só contribuía para piorar o sofrimento. Nunca se queixou e se apresentava sempre disposto. Sua interioridade espiritual era vivida na Cruz, nas noites que passava em íntimo colóquio com Deus e no amor incondicional aos índios brasileiros.

Pe. José Artulino Besen

DOIS POEMAS DE ANCHIETA

Jesus na Manjedoura

– Que fazeis, menino Deus,
Nestas palhas encostado?
– Jazo aqui por teu pecado.

– Ó menino mui formoso,
Pois que sois suma riqueza,
Como estais em tal pobreza?

– Por fazer-te glorioso
E de graça mui colmado,
Jazo aqui por teu pecado.

– Pois que não cabeis no céu,
Dizei-me, santo Menino,
Que vos fez tão pequenino?

– O amor me deu este véu,
Em que jazo embrulhado,
Por despir-te do pecado.

– Ó menino de Belém,
Pois sois Deus de eternidade,
Quem vos fez de tal idade?

– Por querer-te todo o bem
E te dar eterno estado,
Tal me fez o teu pecado.

Ao Santíssimo Sacramento

Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.

Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.

E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.


[1] Cf. ANITA NOVINSKI: Padre Anchieta: cristão ou judeu?. Folha de São Paulo, 24 de janeiro de 2014, opinião, A3. Historiadora e professora da USP, tem dedicado suas pesquisas à presença de cristãos velhos e cristãos novos no Brasil.

[2] Bibliografia para o Centenário da Morte de José de Anchieta. 1597-1997. São Paulo: Edições Loyola, vol. I. p. 204ss.

[3] Anchieta tinha especial inclinação para a medicina, profissão tradicional entre judeus e realizou inúmeras curas, afirma A. NIVINSKI, op. cit.

[4] NELSON DE SÁ: A restauração de Anchieta. Folha de São Paulo, 25 de janeiro de 2014, Caderno Ilustrada, E1. O autor discorre com simpatia sobre a obra de Anchieta, citando a opinião atual de diversos críticos literários. Ariano Suassuna percebe até ecos de Aristófanes no texto todo em tupi da peça “Na Aldeia de Guaraparim”, especialmente a fala de um demônio chamado Tatapitera: “Transtorno o coração das velhas, irritando-as, fazendo-as brigar. Por isso as malditas correm como faíscas de fogo, para ficar atacando as pessoas, insultando-se muito umas às outras”.

[5] Há um exemplar desta primeira edição na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na USP. Na folha de rosto está escrito “nomen Domini tvrris fortíssima”, castelo forte é nosso Deus (Prov 18,10).

 

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