Arquivo para categoria Quaresma e Páscoa

QUARESMA – PRIMAVERA DO ESPÍRITO

O fim do inverno oferece um retrato amortecido da natureza, poucas cores, pouca vida. Já a primavera nos surpreende com a natureza viva, alegre, os troncos quase secos brotando. Pouco a pouco as flores se abrem revelando segredos escondidos no inverno. Insetos, aves, carregam o pólen que fecunda as flores. Tudo revela a força e a beleza da vida.

Assim podemos comparar a Quaresma: as rotinas, o amortecimento espiritual, os resíduos do pecado cedem lugar à primavera. O jejum, a esmola e a oração despertam o espírito, fazem a vida brotar e sentimos o crescimento da felicidade, a vida de fé fortalecida pela vitória sobre as tentações. Vamos crescendo até a explosão do Aleluia da Páscoa.

Gostaria de oferecer a você, leitor, três pequenas reflexões, cujo conteúdo é oferecido pelo papa Francisco em suas homilias matinais na Casa Santa Marta. Propõe gestos muito simples, mas importantes. Nossa vida é construída sobre o fundamento da humildade, do silêncio, da oração silenciosa, de encontros simples com pessoas simples. Tudo na mansidão e na humildade.

Com todos, ser o bom pastor             

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O BOM LADRÃO, PRIMEIRO TEÓLOGO

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Os soldados também zombavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre e diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”. Acima dele havia um letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o outro o repreendeu: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma pena? Para nós, é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal”. E acrescentou: “Jesus, lembra-te de mim, quando começares a reinar”. Ele lhe respondeu: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23, 36-43. 47).

Lucas, o evangelista da misericórdia, dos pecadores acolhidos por Jesus, da mulher pecadora, de Mateus e de Zaqueu, deixou para nós um exemplo da potência da graça quando narra a Paixão do Senhor crucificado: mesmo naquele momento de dor, de desprezo e de morte, não deixou de anotar quem acompanhava Jesus na crucifixão: dois ladrões. E escreveu que um era blasfemo e o outro tinha sido tocado por Jesus que, pouco antes, tinha suplicado: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!”. Um homem crucificado que invoca seu Pai para que perdoe os que se divertiam em humilhá-lo, declarando que o povo não sabia o que estava fazendo, não é somente um homem crucificado: é um homem que atrai sobre si toda a maldade humana para que pudesse pedir a seu Pai que perdoasse a todos. E pediu perdão para si, perdão pelos seus pecados, mas que são os nossos. E inaugurou o tempo da Salvação, o ano da misericórdia.

Muitos anos depois, o apóstolo João escreverá que o trono donde Cristo reinará será a cruz e que sua elevação à glória será a crucifixão. Iluminado pela graça, o bom ladrão reconheceu essa verdade. Os chefes da sinagoga, os mestres de Israel, não reconheceram a divindade de Jesus Cristo, enquanto que o último do povo, o criminoso, do alto de seu patíbulo confessou que Cristo é o filho de Deus, o Messias, o Salvador do mundo. E também foi um oficial do exército romano, pagão que, ao ver o que acontecera,  glorificou a Deus dizendo: “De fato! Este homem era justo!”.

Os Pais da Igreja, de Agostinho a João Crisóstomo, os mestres espirituais como São Bernardo, não se cansaram de admirar o bom ladrão, o primeiro teólogo por que, por primeiro, reconheceu a realeza e o senhorio de Jesus. Esse homem foi um milagre da graça, pois tinha diante de si a realidade totalmente infame de um derrotado e, apesar disso, nele reconheceu um Rei a quem pedir salvação. Contra toda evidência, acreditou no letreiro: “Este é o Rei dos Judeus”. Enquanto seu companheiro de malfeitorias blasfemava, ele confessa sua condição de pecador. Um pede socorro para esta vida, o outro, para a eternidade; um ridiculariza a situação de infortúnio daquele que é o Cristo, e o outro vê no infortúnio um momento da graça.

São Dimas pode ser chamado “patrono dos teólogos”: enquanto muitos estudiosos das coisas sagradas se complicam com os textos bíblicos, o bom ladrão viu e sentiu no homem das dores um Rei, e nos estertores do humilhado e fracassado, o Rei iniciando seu Reinado: lembra-te de mim quando iniciares a reinar. E Jesus começou a reinar perdoando-o.

Tão belo em sua face desfigurada por amor

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O Crucificado – M. Grünewald

O bom ladrão pede socorro a um crucificado, o verdadeiro necessitado de socorro, e não tem dúvida de alcançá-lo.

Na vida espiritual chamamos de sublimação a transformação de uma fraqueza em força, de um vício em uma virtude, e foi isso o que fez o bom ladrão. São João Crisóstomo elogia o bom ladrão que, “mesmo na cruz não se esqueceu de sua antiga profissão de ladrão porque, em poucos instantes, conseguiu roubar o reino eterno do céu”. Sabia roubar com a esperteza que usou no último momento para mais um roubo: a vida eterna.

E continua João Crisóstomo: o Bom Ladrão foi uma daquelas almas eleitas de quem o Senhor disse: “Bem-aventurado aquele que não se escandalizar de mim”. Ele contempla Jesus pregado na cruz e o invoca como se o contemplasse sentado em seu trono celeste; o vê condenado a um suplício infame e o invoca como rei e soberano do universo; vê Jesus totalmente humilhado como se o contemplasse no trono de sua glória (cf. De cruce et latrone).

Foi iluminado e colheu os frutos da cruz antes de nós, e mesmo antes dos apóstolos: “Dimas não tinha visto os milagres operados pelo Senhor durante sua vida, nem pode ver aqueles que realizaria depois da morte e, apesar disso, num companheiro de suplício reconhece seu Senhor, num réu que morre com ele invoca seu Salvador” (Leão Magno – Sermo II De Passione). O papa São Leão vê em Dimas o primeiro mártir, o primeiro confessor da fé, o primeiro evangelista, pois, sem respeito humano, do alto da cruz anuncia a todo o povo a inocência, a potência, o império e a divindade do Salvador divino. Réu até a cruz, logo se tornou confessor. São Cipriano chama o bom ladrão de “mártir e batizado em seu sangue, enquanto confessa a divindade de Cristo”.

Para Agostinho, São Dimas ainda não foi chamado e já é um eleito; ainda não é um servo, e já é amigo; ainda não é um discípulo, e já é um mestre. São João Crisóstomo ensina que “enquanto os sacerdotes e o povo, a uma só voz dizem que Cristo é réu, Dimas o proclama inocente e santo; enquanto todos o maltratam como um escravo, ele o anuncia como Senhor; enquanto todos o insultam como o pior dos homens, se dirige a ele como a seu Deus. Todos blasfemam contra Jesus, somente Dimas o defende. Todos o desprezam, somente ele o louva. Todos o acusam, ele sozinho o declara inocente”. Enquanto isso, com exceção de João, os outros apóstolos estavam covardemente escondidos, tomados pelo medo e pela dúvida.

Com o rito da canonização a Igreja declara que um bem-aventurado está na glória dos céus, e bom ladrão foi canonizado pelo próprio autor da santidade, Jesus Cristo, ao declarar-lhe que “hoje estarás comigo no paraíso”.

Até a conclusão da história, os dois ladrões simbolizarão a humanidade enquanto contempla o Homem crucificado: muitos verão o fracasso de um profeta bem intencionado, muitos verão o Rosto de um homem que se interpôs entre nós e Deus, para que o Pai não pudesse nos olhar sem antes ver seu Filho pedindo por nós: “perdoai,  eles não sabem o que fazem”. E a cruz se torna consolação.

Pe. José Artulino Besen

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A QUARESMA E A BUSCA DA LIBERDADE

O homem na lua, isolado de todos – Jordi Gamón Blanch

O homem na lua, isolado de todos – Jordi Gamón Blanch

A liberdade é constitutiva do ser humano, e ser livre o distingue de todas as criaturas, pois torna possível o exercício da vontade. Viver com dependências priva a pessoa de sua vontade e, fazer o outro dependente de mim significa usar um direito que não tenho de priva-lo da humanidade.. Mas, tanto o lutar contra as dependências como o protestar contra a escravização imposta significa querer ser pessoa, recuperar a dignidade ameaçada. Em outras palavras, lutar contra a escravização já é exercitar a liberdade.

É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1). O versículo de Paulo foi escolhido pela Igreja no Brasil como lema da Campanha da Fraternidade, cujo tema é a libertação da escravidão imposta pelo tráfico humano de pessoas, crianças, mulheres e órgãos. Escravo de si, o homem se arroga o direito de escravizar para si. Escravo do dinheiro ou do prazer, não tem escrúpulos de roubar a liberdade de alguém, porque é dominado por sua vontade escravizada. Corrompido em sua estrutura pessoal pela violência, corrompe os que se encontram fragilizados pelas tantas escravizações modernas.

Jesus Cristo libertador é o fundamento da salvação humana que se realiza na restauração da imagem e semelhança divina no homem e na mulher. Deus não nos criou para as dependências do medo, do prazer e da morte, mas sim, para a liberdade de filhos que se tornam capazes de amar, partilhar, reunir, dar a vida. Mesmo o ato de fé pode ser corrompido pela escravidão se a vida de fé é instrumentalizada para alimentar o narcisismo, o medo, a superstição, o domínio. Já, por um caminho nem sempre evidente, sinal muito forte da decisão pela liberdade é a religiosidade popular que faz o pobre crer na sua força, que fez o negro escravo alimentar com rituais sua história para que não perdesse a dignidade. Dela se origina a força da rebelião, da fuga da escravidão. É muito indicativo que as terapias de libertação de vícios encontram eficácia verdadeira e permanente se ligadas a um ato de fé no Deus da vida que, a cada dia, renova a decisão pela libertação.

Querer ser cristão é querer ser livre, humanamente íntegro. Em nossa vida quotidiana, ser livre do olhar do outro, da moda, preguiça, hedonismo, fechamento em si, prazer, supérfluo, desperdício, aparência exterior, ódio, ressentimento, e de todas as drogas. Cristo nos quer seres viventes, não dependentes, e para a liberdade nos libertou da idolatria, vaidade, soberba, dinheiro. Fez-nos tão livres que somos capazes de amar.

Fez-se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza.

(cf. 2 Cor 8, 9)

Francisco inspirou-se nessa frase de Paulo para a Mensagem quaresmal que enviou à Igreja: “Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza” (2 Cor 8, 9). O Deus forte é o Deus frágil, o Deus rico é o Deus pobre, o Deus de Jesus é o Deus Pai que nos dá seu Filho. Tudo aconteceu na encarnação e na redenção, na manjedoura de Belém e na cruz do Calvário.

É o estilo de Deus: revelar-se por meios pobres e frágeis, na generosidade, no amor pura graça de quem quer ser nosso próximo. É inaudito na história religiosa: o Salvador anuncia-nos o Deus amor que quer nos amar, que bate à nossa porta para cear conosco, que pede licença para nos oferecer tudo. Tão frágil como cada um de nós e, com isso, entre nós e ele, e entre nós, o amor divino gera semelhança, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Com a parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37), Jesus oferece um retrato da pobreza de Deus: encontra o homem violentado quase morto à beira da estrada, pensa suas feridas, e o leva a uma hospedaria. Escreve Francisco: “a pobreza de Cristo, que nos enriquece, é ele fazer-se carne, tomar sobre si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus”. Cristo se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres. Quem é dominado pela ânsia de glória não crê na pobreza dos gestos sacramentais, na simplicidade das Bem-aventuranças.

“É para a liberdade que Cristo nos libertou” da miséria, “que é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança”.

Francisco distingue três tipos de miséria que impedem a verdadeira libertação e a liberdade: a miséria material, privação dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiênicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural.

A miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado e que traz imenso sofrimento para as famílias que têm um membro subjugado pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia, o que pode ser fruto de uma opção pela morte, ou da falta de perspectivas de futuro, de trabalho, de pão, de educação, de esperança. Enveredar por esse caminho, diz Francisco, é um suicídio incipiente: se não buscar a libertação, a pessoa gera para si um caminho que leva à morte.

E a miséria espiritual pode ser causa das misérias pessoais, ou sociais, quando o egoísmo mergulha os outros nelas. Quando nossa soberba nos convence de que somos auto-suficientes, de que Deus é uma paixão inútil, afastamos Cristo que nos dá a mão, negamos olhar de quem se encontra ao nosso lado, vamos a caminho da falência.

O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus que, oferecendo-nos seu Filho, nos recria libertando-nos da morte. A Quaresma oferece-nos a oportunidade de despertarmos para a vida, restaurar as forças para vencer as escravidões.

Pe. José Artulino Besen

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