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BEM-AVENTURADO PAPA JOÃO PAULO I

Em 13 de outubro de 2021, o Papa Francisco aprovou um milagre atribuído ao servo de Deus Papa João Paulo I. Uma vida breve que nos ofereceu três papas num ano e, mais ainda, tornou possível que tivéssemos – agora – três Papas não italianos.

Albino Luciani nasceu em 1912 em Canale d’Agordo, Belluno, e morreu em 28 de setembro de 1978, no Vaticano. Era filho de um operário socialista que tinha trabalhado como emigrante na Suíça. Quando decidiu ir para o seminário, seu pai o admoestou: “Espero que quando te tornares padre ficarás do lado dos pobres, porque Cristo estava ao lado deles”.

João Paulo I, que será beatificado no próximo ano, foi papa apenas 33 dias: não deixou documentos sobre seu pontificado, a não ser nomeações para a Secretaria de Estado, algumas cartas, homilias, mas contribuiu para modificar a imagem do papa, indicando um modo novo – simples, pessoal, evangélico – de ser Papa. Nenhum documento ficou para a história do Papado, mas modificou a imagem papal, deixando um exemplo coerente, permitindo, pelo exemplo, intuir de certo modo como poderia ser seu Pontificado se tivesse tido tempo. Esse novo modo de ser Papa, o exemplo, influiu em seu sucessor, Papa Wojtyla.

Transformou a cerimônia da Coroação papal numa “Celebração de início do ministério de Pastor universal”, como continuarão os sucessores. Quis renunciar à Sédia Gestatória, depois aceitando, devido a pressões curiais.

O Papa Paulo VI e o Cardeal Albino Luciani, o futuro Papa João Paulo I, são fotografados em Veneza em 1972. O Papa Francisco beatificará o Papa Paulo em 19 de outubro durante a Missa de encerramento do Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre a família. O milagre necessário para a beatificação do Papa Paulo envolveu o nascimento de um bebê saudável para uma mãe na Califórnia, depois que os médicos disseram que ambas as vidas estavam em risco. (CNS photo / Giancarlo Giuliani, Catholic Press Photo) (12 de maio de 2014) Ver BLESSED-PAULVI 12 de maio de 2014.
Papa Paulo VI é saudado por Albino Luciani em Veneza.

Como Cardeal, sugeriu a Paulo VI que assumisse uma posição menos rígida sobre a pílula e, como Papa, convidou mais vezes à confiança em Deus “que é pai, mas também mãe”, a não perder nunca a esperança, uma virtude obrigatória para nós crentes, que nos faz caminhar num clima de confiança e de abandono.

O pobre Papa Luciani não dormiu na noite depois da eleição, atormentado por escrúpulos por ter aceito ser Papa e apareceu tocado por todos os 33 dias de sua breve missão. Disse aos Cardeais, brincando sem brincar: “Que Deus perdoe o que fizeram”. Sentiu-se fora de lugar no discurso após a eleição: “Mas é um pouco fora de lugar dar-lhes a bênção apostólica… Todos sois sucessores dos Apóstolos… De qualquer modo está escrito aqui: ‘Em nome de Cristo dou como efusão de sentimento, a vós, as primícias da minha bênção apostólica’… Linguagem um pouco áulica… Paciência”.

Não tinha nenhuma dificuldade de identificar-se com os humildes e com os necessitados. Uma vez falou que “passou fome” em criança, quando conduzia as vacas à pastagem, com o pai emigrado para trabalhar na Suíça.

Como bispo de Vittorio Veneto e como patriarca de Veneza estava acostumado a se encontrar com as pessoas e agora – como Papa – ele temia que não poderia basear sua ação nessa relação: “Num certo sentido estou triste por não poder retornar à vida do apostolado que me dava tanto prazer. Sempre teve dioceses pequenas, meu trabalho era junto dos jovens, os operários, os doentes. Não poderei mais fazer esse trabalho”. Assim falou, em 30 de agosto de 1978, aos cardeais que o elegeram.

Foi definido “o Papa do sorriso”, mas quem o conheceu como cardeal notou que não sorria tão facilmente, como o fazia a cada dia no mês como Papa. Talvez esse sorriso significava seu desejo de mostrar sua solicitude e sua alma de bom pastor em relação a cada pessoa. Como Papa, queria manifestar que deixava suas “dioceses pequenas” e ingressava numa diocese imensa, tendo por auditório o mundo. Receava que seu temperamento voltado para o contato pessoal não o ajudasse. Era um sorriso que manifestava a todos seu desejo de comunicar. Talvez a dor escondida por trás desse sorriso apressou-lhe a morte e hoje o acompanha na memória dos humildes, dos pobres, felizes com o anúncio da beatificação.

Papa João Paulo I abençoa o Cardeal Wojtyla, que será seu sucessor menos de um mês depois.

João Paulo I teve a vida marcada pela simplicidade dos santos. Ordenado bispo por São João XXIII, em 1958, sucedeu a São Paulo VI em Roma e foi sucedido por São João Paulo II. Sua humildade trouxe-nos o encanto dos Santos e ofereceu à Igreja a esperança de uma nova época: o infarto levou do mundo esse homem rico em santidade, rico na pobreza e deixou-nos a imagem de um homem que encheu o mundo de confiança no Pontificado romano a que ofereceu um novo modo de exercício do ministério petrino. Último Papa italiano, deixou-nos a surpresa de um Papa polonês, um alemão e um argentino. Deus seja louvado!


Pe. José Artulino Besen

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DOM PIERRE CLAVERIE E OS 18 MÁRTIRES DA ARGÉLIA

Dom Pierre Claverie e os 18 Mártires da Argélia

No dia 8 de dezembro de 2018 a Igreja celebrará o martírio de 19 cristãos e os declarará bem-aventurados. A grande liturgia acontecerá na basílica de Santa Cruz em Oran, donde era bispo Dom Pierre Claverie. Pela primeira vez uma beatificação acontecerá num país 99% muçulmano, um grupo de mártires que incluirá Dom Claverie, os 7 monges trapistas de Tibhirine, 6 religiosas e 5 religiosos.

Na década da 1990, a Argélia foi mergulhada numa guerra com motivação religiosa: um movimento armado de islamitas se levantou contra o regime vigente para instaurar uma república islâmica, uma teocracia.  São contados 150.000 assassinatos entre os islâmicos e numerosos cristãos entre bispo, padres, religiosos e religiosas, que eram estrangeiros e tinham recebido ordens de deixar o país. Eram estrangeiros, sim, mas estavam bem integrados no mundo argelino.

Eram religiosas consagradas ao atendimento dos mais pobres, crianças, doentes inválidos, um trabalho de amor e dedicação sem nada pedir do que poder amá-los.

Durante os anos da guerra civil na Argélia, “o sangue cristão e o sangue muçulmano se misturaram, fazendo crescer a fraternidade”. Tornou-se um só sangue o dos adoradores de Deus/Alá.

Os grupos terroristas islâmicos lançaram campanha contra os estrangeiros residentes no país, especialmente contra os de nacionalidade francesa, e os lugares cristãos foram um dos seus principais alvos.

A comunidade monástica trapista da Ordem cisterciense de estrita observância

Apesar disso, os monges trapistas do mosteiro de Tibhirine decidiram permanecer devido ao forte vínculo de afeto que tinham com a população local. Na madrugada do dia 27 março de 1996, terroristas do Grupo Islâmico Armado (GIA) assaltaram o mosteiro e sequestraram 7 dos 9 monges que havia naquele momento, todos de nacionalidade francesa.

As negociações para trocar os monges pelos prisioneiros do GIA não funcionaram e, em 21 de maio de 1996, os terroristas anunciaram que tinham-nos decapitado. Suas cabeças foram localizadas em 30 de maio, mas seus corpos nunca foram encontrados.

Como surgiram esses monges? No ano de 1938 um grupo de monges trapistas franceses fundou a comunidade monástica de Nossa Senhora do Monte Atlas, em Tibhirine, Argélia. Situados num país muçulmano ocupado pela França, sem permissão de realizar conversões, esses homens de Deus tinham como sentido de sua presença estar junto dos muçulmanos, acolhê-los, conversar, colocar em comum os dons. E praticar a oração comunitária, tanto na intimidade monástica como com os irmãos que invocavam Alá.

Tudo isso não encontra explicações aos olhos do mundo, e nem de muitos cristãos. O martírio dos missionários, porém, é um dom, é uma experiência concreta do projeto de amor que Deus tem pela humanidade. O sangue que penetrou a terra argelina dela fará brotarem flores de paz. O sangue dos missionários é esperança de paz para o mundo.

Dois anos antes, em abril de 1994, o Irmão Lucas, monge médico, escrevera a um amigo, também médico, em Lyon: “É através da pobreza, do fracasso e da morte que caminhamos ao encontro de Deus”. O sete mártires do Monte Atlas, tão antigos e tão modernos, estavam disponíveis para condividir até a morte todas as alegrias e dores, angústias e esperanças, e a doar inteiramente a vida a Deus e aos irmãos da Argélia.

Dom Pierre Claverie, bispo de Oran

Dom Pierre Claverie, bispo de Oran

Em 1º de agosto de 1996, coube a Dom Pierre Claverie, bispo de Oran, também na Argélia, sofrer o martírio. Após celebrar missa pelos monges martirizados retornava à sua residência, no carro conduzido pelo motorista muçulmano Mohammed, quando uma bomba colocada na garagem explodiu, estraçalhando a tal ponto os dois corpos que tornou impossível distinguir-lhes o sangue. Entusiasta do diálogo cristão-muçulmano, Dom Pierre fecundou o amado solo argelino com sangue cristão e muçulmano, na demonstração de que o amor é forte, mais forte que a morte, que discussões religiosas.

As missões da Igreja obedecem à palavra do Senhor: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). O Evangelho, como tão evidente era para Paulo, não é uma doutrina, uma estrutura, concentrações, organizações: o Evangelho é uma pessoa, Jesus. Jesus que nos trouxe a Boa Notícia de que seu Pai é nosso Pai, e é Pai dos humildes, dos doentes, dos pecadores, dos perseguidos e perseguidores. Jesus é o narrador do Pai, o missionário é outro Jesus narrando o Pai. Aqueles missionários frágeis e fragilizados pelo ambiente eram a narração viva do Evangelho para os muçulmanos: “Querem conhecer aquele em quem nós cremos? Olhem nossa vida!”. A um repórter que perguntou aos cristãos argelinos a razão de sua missão, foi respondido: somos simplesmente cristãos.

Jesus, o pobre da Galileia, não pode ser anunciado coerentemente com meios ricos. Sua vida que narra o Pai somente é compreendida através dos meios pobres que são marcados pela cruz: a dor, o joelho dobrado em adoração, o silêncio, a oração, a contemplação, o jejum, a obediência, o sofrimento. Não permitem medições estatísticas, não dão manchetes, são marcados pelo silêncio humilde; são os meios preferidos de Deus, são os meios que tocam o coração de Deus (cf. J. Maritain, Filosofia da História, 1957).

Há sete séculos, afirmava Santo Tomás de Aquino: “O fruto da vida ativa é proporcional à plenitude da vida contemplativa”. Em outras palavras: sem a retaguarda da oração, a mais pobre dos meios pobres, a ação pastoral e evangelizadora nos deixará felizes, com a sensação do dever cumprido, mas não implantará no mundo o Reino de Deus.

Se a missão da Igreja se apoiar nos meios ricos da persuasão, da palavra bem falada, da autoridade impositiva, como já foi em outros tempos, causará impressão, será motivo de congratulações aos olhos do mundo, mas estará ocultando o Pobre de Nazaré, estará ocultando o Pobre Deus. Será inútil.

Talvez o Senhor não nos tenha concedido a graça da missão, do testemunho em terras distantes, mas nos dá sempre uma graça imensa: viver o Evangelho, ser Jesus em meio aos estrangeiros, revelar a face do Pai aos que nos cercam, aceitar a violência do desprezo, do ódio, da concorrência do sucesso.

Testamento do Irmão Christian de Chergé

Irmão Christian de Chergé

Como cristãos e cidadãos, viver a missão da paz e da reconciliação. Retornando ao Mosteiro do Monte Atlas, uma palavra escrita pelo Irmão Lucas às vésperas do sequestro: “Não penso que a violência possa extirpar a violência. Não podemos existir como homens a não ser aceitando fazer-nos imagem do amor como foi manifestado no Cristo que, justo, quis sofrer a sorte do injusto. A morte injusta de Cristo rompe a espiral infernal do ódio e dá vida a uma nova humanidade, animada pelo sopro do Espírito”.

São páginas de intensa vida mística o Testamento espiritual do Irmão Christian de Chergé, prior do mosteiro de Tibhirine, escrito em dois momentos:  em Argel, no dia 1º de dezembro de 1993, e em Tibhirine, no dia 1º de janeiro de 1994. Transcrevemos dois momentos: a aceitação do martírio e a oração por aquele que lhe provocasse a morte, a quem chama “amigo do último instante”.

Se algum dia me acontecesse – e isso poderia acontecer hoje – ser vítima do terrorismo que parece querer abarcar agora todos os estrangeiros que vivem na Argélia, eu gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem de que a minha vida estava ENTREGUE a Deus e a este país. Que eles soubessem que o Único Mestre de toda a vida não me abandonaria nesta brutal partida. (…)

“Como posso ser digno dessa oferenda? Eu desejaria, ao chegar esse momento da morte, ter um instante de lucidez tal, que me permitisse pedir o perdão de Deus e o dos meus irmãos os homens, e perdoar eu, ao mesmo tempo, de todo o coração, aos que me tiverem ferido.”…

Por essa minha vida perdida, totalmente minha e totalmente dele, dou graças a Deus que parece tê-la querido inteiramente para a alegria, apesar de tudo. Neste ‘obrigado’, em que tudo está dito, agora, da minha vida, eu certamente incluo os amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos daqui, do lado da minha mãe e do lado do meu pai, de minhas irmãs e meus irmãos e dos seus, o cêntuplo dado como foi prometido! E a ti também, meu amigo do último instante, que não sabias o que estavas fazendo. Sim, também para ti eu quero esse ‘obrigado’, e este ‘A-Deus’ cara a cara. E que possamos nos encontrar, ladrões felizes, no Paraíso, se for do agrado de Deus, o Pai de nós dois. Amém! Im Jallah!”.

Pe. José Artulino Besen

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CELEBRAÇÃO DOS SANTOS E RECORDAÇÃO DOS FIÉIS DEFUNTOS

Escada de Jacó, nossa ponte para Deus (G. Cordiano).

«As coisas santas são para os santos», diz o presbítero na liturgia bizantina, antes da comunhão. E o coro responde: «Um só é santo, Jesus Cristo…». Um só é santo, é verdade, mas todos aqueles que a Eucaristia integra no corpo de Cristo participam dessa santidade. Todo ser humano, criado à imagem de Deus, tudo, penetrados pelo Espírito participam da santidade da existência universal.

No cristianismo das origens, cada comunidade era chamada «igreja dos santos», uma comunhão de redimidos/redentores chamados a orar, testemunhar, servir a fim de que se manifeste em cada ser e em cada coisa a ressurreição. A santidade é a vida finalmente libertada da morte.

Pouco a pouco tomou-se consciência de que alguns cristãos eram testemunhas mais eloquentes, primeiramente os mártires, depois os confessores da fé. Seus túmulos se tornaram lugares de peregrinação, sobre muitos deles ergueram-se igrejas com o altar sobre o túmulo. A comunidade que ali celebrava a Eucaristia queria testemunhar a mesma fé pela qual viveram ou deram a vida. No Ocidente, no ano de 835 foi fixada a festa de Todos os Santos para o dia 1º de novembro. Depois, fixou-se para o dia seguinte o «dia dos Finados»: os mortos são arrastados pelos santos, que sabem não existir mais a morte no Ressuscitado; os mortos são mergulhados no imenso rio de vida da comunhão dos santos.

Numa sociedade secularizada, como a nossa, a morte muitas vezes é ocultada e grandes figuras de santidade são distorcidas e acabamos com o sentido profundo de Todos os Santos. Ainda vamos ao cemitério, limpamos os túmulos, acendemos uma vela, depositamos algumas flores. A maioria nem reza. Mas, precisamos retornar à festa de Todos os Santos, porque ela nos traz, em sua riqueza, a memória dos mortos. Disse Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida” e, para ele os santos abrem caminho, pois se identificaram com o único ser vivo e puderam dizer: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20).

Os santos fazem circular o amor no corpo de Cristo, e sem dúvida no mundo inteiro que misteriosamente se torna eucaristia. Às vezes, enquanto rezamos por alguém que há pouco nos deixou, lembramos também de pedir-lhe que reze por nós. A festa de Todos os Santos abre nossos olhos para a santidade escondida em cada pessoa ou mesmo sobre a santidade da terra (e é por isso que amamos o Cântico das Criaturas de Francisco de Assis).

O corpo de nossos mortos, recordação de uma vida

Em dois de novembro, Comemoração dos Fiéis Defuntos, nos dirigimos aos cemitérios e com carinho acendemos velas nos túmulos das pessoas queridas. Pais recordam filhos que partiram, filhos recordam pais, esposos lembram os mortos, amigos pranteiam amigos: todos agora igualados pela morte, na expectativa da feliz ressurreição. Ver um túmulo nos pode desafiar a fazer o bem que aquela pessoa ali recordada fez, ou evitar, sem julgamento, a violência que essa pessoa criou ao seu redor. Recordar os artífices da justiça, da paz e da beleza, nossos ancestrais ou contemporâneos. O cemitério é a casa da memória, da gratidão, da reconciliação. Oferece-nos uma visão da fragilidade humana e um desafio à santidade a que somos chamados por nossa imagem e semelhança de Deus.

Espalha-se a cremação de cadáveres, iniciada no século XIX no ardor do ateísmo/panteísmo/materialismo e hoje muito especialmente em países secularizados. Decide-se por túmulos sem nenhuma identificação ou por espalhar as cinzas ao vento. Iniciamos dizendo que o Código de Direito Canônico, o Catecismo da Igreja Católica (n. 2301) e o Diretório sobre a Piedade popular não opõem obstáculos à cremação em si, mas quanto à motivação e ao destino das cinzas.

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Antonio Canova – Carita’ elemosina (Dijon Museum)

Muitas pessoas têm dificuldade de encarar a morte de seus semelhantes, pois quebra o ritmo ordinário da vida com a imagem de alguém que se ausenta. Na sociedade secularizada a morte é muitas vezes ocultada. Melhor encerrar tudo entregando o cadáver a uma empresa, para evitar o incômodo de um “morto”, por mais querido que seja. A cremação surge como um caminho breve. Mas, será que a cremação respeita o desejo dos parentes e amigos que gostariam de visitar a sepultura? Não estaria subjacente a negação da dignidade do corpo, em vida comunicador de vida, de afeto, de trabalho, de alegria? Em outros tempos previa-se até uma Missa do Cadáver, celebrada nas Faculdades de Medicina: unia-se ali a oração pelos mortos ao respeito pelos cadáveres que seriam objeto de estudo dos acadêmicos. Era o respeito pelos restos mortais de pessoas nem conhecidas.

A face mais delicada é a possibilidade interrompida da memória dos que nos precederam, negando aos descendentes a memória dos antepassados. Por que hoje se dá tanta importância à busca dos restos mortais das vítimas das guerras, dos genocídios, das vítimas da violência e das ditaduras? É o desejo sagrado de dar-lhes uma sepultura, um lugar de descanso. Veja-se a dor dos parentes das vítimas de acidentes aéreos: como dói não poder contemplar e sepultar os restos mortais de pessoas queridas!

Após o ato da cremação – geralmente feito com grande respeito – espera-se em casa a urna com as cinzas. Alguns as dispersam no mar, outros em um jardim, outros as guardam em casa. Psicólogos e sociólogos advertem: o rito da cremação quebra o rito do luto com a entrega dos restos mortais a uma empresa. Guardar as cinzas em casa cria um ambiente onde não se faz a distinção do lugar dos vivos e dos mortos, com um clima doentio de luto sem fim. A urna com as cinzas, guardada em casa, pode ser respeitada pelos parentes atuais. E no caso da venda do imóvel, anos depois, não haveria o perigo de se jogar tudo no lixo?

Talvez o lado mais grave do dispersar as cinzas ou conservá-las em casa seria o negar a memória pública dos que nos precederam. Uma sociedade caminha olhando os caminhos traçados pelos antepassados. O corpo de nossos mortos é relíquia venerável ou incômoda? Uma solução apresentada é haver nas igrejas, capelas de cemitérios, espaços onde colocá-las por algum tempo, até a superação natural do rito da saudade. E depois depositá-las nos locais públicos onde são inumados muitos falecidos.

Outro perigo é a transferência do rito do sepultamento para empresas que lucram com ofertas de cerimônias sofisticadas, mas que tiram o envolvimento dos familiares. Já existe mercado de luxo para velório, cremação de pessoas (e de animais de estimação). Aqui e ali se denunciam abusos: cremação de diversos corpos ao mesmo tempo, revenda das vestes, ornamentos e da própria urna. Se o morto é parte de um negócio, nada impede o mergulho no mundo da esperteza.

Nas orações diante de um morto lembramos a alegria trazida por aquele corpo, sua purificação pela água batismal, sua unção com o óleo do Crisma, sua alimentação pelo Pão eucarístico, agradecemos a Deus pelo instrumento de amor que foi e pedimos perdão se foi instrumento de ódio, violência, ou se foi maltratado pela fome, pelas misérias de nosso egoísmo.

É bom que aprendamos a lembrar, com a filósofa Simone Weil, que a maior graça que nos é dada é saber que os outros existiram. E que continuam a existir. A festa de Todos os Santos, iluminando a memória dos mortos, nos lembra que Cristo continua incessantemente a vencer a morte e o inferno. Um santo monge do Monte Athos afirmava: enquanto uma alma morar no inferno, aprisionada pelos muros da própria rejeição, Cristo estará com ela no abismo da morte, e com ela estarão todos os redimidos, a suplicar que também ela se abra à eterna festa de TODOS os Santos.


Pe. José Artulino Besen

 

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SÃO PAULO VI E SANTO OSCAR ROMERO: SANTOS PERIGOSOS PARA TEMPOS DESAFIADORES

Santos Paulo VI e Oscar Romero

A canonização do Arcebispo Oscar Romero é a ponte que o Papa Francisco necessita para conduzir uma igreja universal presa no passado em direção a um futuro que irá purificá-la e alinhá-la com os pobres do mundo. E a união de Romero e do papa Paulo VI não é uma jogada de relações públicas para equilibrar um radical com um tradicionalista. Esses dois santos compartilharam um martírio que construiu a ponte que sustenta uma única trajetória, inspirada pelo Espírito Santo, que renovará a igreja e revelará novamente o mistério de Jesus como o motor da história. É uma história emocionante, e algumas figuras-chave ajudaram a acontecer.

Quando Romero foi assassinado em 1980, o jesuíta americano pe. James Brockman viu a necessidade urgente de uma biografia objetiva do arcebispo morto de El Salvador. Brockman, ex-editor da revista América, sabia que Romero tinha sido o foco de intensa controvérsia durante seu breve tempo como arcebispo. Ele também sabia que, apesar da aclamação quase unânime em toda a América Latina de que Romero era um santo, os revisionistas já estavam trabalhando para conter seu impacto. Seus críticos argumentaram que esse piedoso prelado conservador havia sido enganado por radicais de esquerda durante uma perigosa tendência ao marxismo que varreu a América Latina. Seu assassinato foi o resultado trágico mas previsível de sua intromissão na política e a abdicação de seu papel espiritual primário como bispo.

Atualizado em 1989, o livro foi complementado por diários pessoais em que Romero se angustiava com a crescente violência em El Salvador provocada por forças de segurança estatais, esquadrões da morte e grupos de oposição que tiraram centenas de vidas inocentes antes dos 12 anos brutais de guerra civil (1980-92).

Santo Oscar Romero

Dom Romero sofreu constante difamação na mídia e calúnias de quatro dos bispos do país alinhados com o governo e as elites ricas do país. O núncio papal alimentou um fluxo constante de relatórios negativos a Roma, acusando Romero de promover a chamada “teologia da libertação” e apoiar a revolução violenta.

Romero defendeu sua ação pastoral citando o Concílio Vaticano II e a aplicação de seus princípios à realidade vivida na América Latina por seus bispos, que se encontraram com o Papa Paulo VI em Medellín, Colômbia, em 1968, onde proclamaram a “opção pelos pobres” “e desafiaram as injustiças estruturais arraigadas que estavam causando pobreza e violência generalizadas na região.

Romero encontrou o apoio adicional da exortação de Paulo VI sobre evangelização,  Evangelii Nuntiandi , de 1975 , que pregava fortemente a libertação da opressão como parte integrante da missão da igreja. Apesar das ameaças de morte, da pressão de Roma e do fluxo de armas dos Estados Unidos para apoiar as forças armadas contra uma insurgência comunista, Romero permaneceu fiel pastor de seu rebanho até a sua morte em 24 de março de 1980, enquanto celebrava a missa num hospital em San Salvador.

A canonização sustenta heróis da fé que nos confronta com o que o teólogo Johann Baptist Metz chamou de “memória perigosa” do Cristo crucificado e ressuscitado, que interrompe a história em todas as gerações para convocar discípulos para ouvir a Palavra de Deus e mantê-la.

Outra testemunha crucial chegou a San Salvador em 1990, o jesuíta americano Dean Brackley, que permaneceu no corpo docente da Universidade Centro-americana pelo resto de sua vida, recebendo milhares de peregrinos e universitários norte-americanos, ousando lembrá-los da responsabilidade dos EUA por grande parte da violência na América Central, e pelo desesperado surto de violência, pelos refugiados fugindo para o norte.

Antes de morrer de câncer no pâncreas em 2010, Brackley mediu profeticamente a importância da canonização de Oscar Romero:

“É preciso suspeitar que, se Romero não fosse um bispo, ele poderia ter um caminho mais fácil para a canonização, porque nem todos na hierarquia católica se sentiam à vontade para apresentá-lo como um bispo a ser imitado. …

Romero modelou a “igreja dos pobres” que João XXIII pediu no início do Concílio Vaticano II. As conferências de Medellín e Puebla revelaram como essa igreja deveria se parecer na América Latina. Romero seguiu esse exemplo”.

A mensagem, no entanto, é universalmente válida: a igreja só será portadora de esperança credível para a humanidade se estiver com os pobres, com todos os que são vítimas do pecado, da injustiça e da violência. Se andarmos com eles, como fez Romero, incorporaremos as boas novas pelas quais o mundo tanto almeja. Não precisamos de uma igreja que nos convide a nos esconder dos horrores de hoje, a escapar dos problemas deste mundo, mas a suportar seus fardos.

Foi isso que Romero fez, inspirando inúmeros outros a colaborar com ele. Isto irá convidar a perseguição e incompreensão, mas essa é a marca da verdadeira igreja. Romero não procurou o que era melhor para a instituição como tal, mas o que era melhor para o povo. A longo prazo, isso é o que é melhor para a igreja também. A instituição que se esforça para salvar a si mesma se perderá mas, se se perder em serviço amoroso, se salvará.

Os 75.000 mártires da guerra civil em El Salvador, não viveram para ver Francisco, nosso papa latino-americano. Mas nas primeiras horas após sua eleição, Francisco invocou o sonho do papa João XXIII de uma “igreja dos pobres”, dizendo que gostaria de “uma igreja que é pobre e que seja para os pobres”. Agora é sua vez de sonhar com tal igreja, pastoreada por bispos com cheiro de ovelha, pastores servos e vibrantes paróquias cheias de discípulos que compartilham as “alegrias e esperanças, as aflições e ansiedades” do mundo moderno, especialmente jovens ardendo em chamas para viver uma vida autêntica.

São Paulo VI

Mas tudo isso seria apenas uma ideia se Romero não a tivesse vivido e um cauteloso Paulo VI não tivesse sofrido seu próprio martírio de difamação de progressistas e tradicionalistas, por insistir que a unidade da igreja era mais importante do que vencedores e perdedores depois do concílio.

A canonização sustenta heróis da fé que nos confrontam com o que o teólogo Johann Baptist Metz chamou de “memória perigosa” do Cristo crucificado e ressuscitado, que irrompe na história em todas as gerações para convocar discípulos para ouvir a Palavra de Deus e mantê-la.

Os  Santos Oscar Romero e Paulo VI fizeram isso em seu tempo. Seu testemunho não foi apenas cruzar a ponte do mistério pascal para um futuro diferente e necessário, mas que estão convidando a todos a segui-los.

Paulo VI abriu a missão da igreja para o mundo, para o mundo dos pobres; abriu o coração da igreja para a África, a Ásia, que viviam grande e até doloroso processo de descolonização. É quase impossível falar de evangelização sem citar Paulo VI na Populorum Progressio e Evangelii Nuntiandi, bússolas que indicaram o caminho de Santo Oscar Romero, Santo Oscar da América.

Hoje, 14 de outubro de 2018, a igreja apresenta ao mundo o que ela tem de mais precioso: seus santos. Sem eles, ela se reduz a uma instituição de muita ação ou de muitas cerimônias, mas sem apresentar ao mundo seu retrato que é o rosto de Jesus, multiplicado nos milhões de rostos de cristãos que testemunham sua fé, o sentido de sua vida como doação incondicional aos pobres.

Perante bispos de todo o mundo, Francisco destacou necessidade de deixar seguranças e riquezas para seguir Jesus Cristo. O Papa desafiou hoje a Igreja Católica a cruzar “novas fronteiras”, à imagem dos novos santos Paulo VI e Óscar Romero, canonizados hoje, deixando para trás riquezas e ilusões de segurança.


Pe. José Artulino Besen

 

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SANTA MARIA MADALENA, TESTEMUNHA E APÓSTOLA DA RESSURREIÇÃO

Giotto di Bondone (Noli me tangere) , 1304-06, afresco, Cappella Scrovegni, Pádua

Por vontade do papa Francisco, um decreto da Sagrada Congregação do Culto divino de 3 de junho de 2016 elevou a memória litúrgica de Santa Maria Madalena à Festa igual à dos Apóstolos, com data de 22 de julho. Por que essa memória litúrgica de 22 de julho é equiparada à Festa dos Apóstolos? Uma mulher por muitos identificada com a prostituta da Galiléia ou com a mulher que no banquete na casa de Simão lava e unge os pés do Senhor com perfume caríssimo, receber a honra apostólica? Na verdade, desde uma homilia do grande papa São Gregório Magno, as três mulheres são reduzidas a uma “Maria”. E assim ficamos 1.500 anos celebrando Maria Madalena como a Maria de Betânia e a Maria prostituta. Essa redução de Maria Madalena provocou toda uma linha de arte, literatura e, ultimamente, filmes que a retratam como mulher lânguida, erótica, apaixonada. No linguajar popular, Maria Madalena se tornou sinônimo de mulher vulgar. Leia o resto deste post »

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