PADRE AURÉLIO CANZI – A SERVIÇO DA VIDA

Pe. Aurélio Canzi - pioneiro da Igreja no Oeste Catarinense

O alemão Pe. Guilherme Roer (1821-1891) foi o grande apóstolo entre os imigrantes europeus que procuraram abrigo na região de Teresópolis e do Braço do Norte. Sua disponibilidade ao sacrifício deram vida e dignidade às pequenas comunidades que se formavam ao redor de uma pequena igreja. O Pe. Aurélio Canzi simboliza o apostolado entre os migrantes gaúchos que demandaram as terras do Oeste catarinense. Líder religioso e comunitário, assistiu ao nascimento de comunidades que hoje são municípios e paróquias. Suas vidas são sinal visível da dedicação apostólica do clero catarinense e um chamado ao mesmo clero a abrir-se aos migrantes que continuam a se multiplicar em nossa terra e no mundo.

Vocação missionária

Filho de José Canzi e de Catarina Giongo Canzi, Aurélio Ângelo nasceu em Garibaldi, RS em 13 de fevereiro de 1915. Ingressou no Seminário Menor São José, de Santa Maria, RS aos 14 anos e foi ordenado presbítero em Maratá, RS em 17 de dezembro de 1943.

Sua vida sacerdotal transcorreu em São Miguel do Oeste, extremo oeste catarinense, cujo nascimento acompanhou e nele teve participação decisiva.

Após a colonização alemã de Itapiranga, a colonização da região prosseguiu com a chegada dos primeiros imigrantes gaúchos em 1929. O atendimento religioso era dado pelos padres jesuítas de Itapiranga, com duas visitas anuais. Tal era a importância da religião para as novas comunidades que, tão logo surgissem, as famílias reunidas providenciavam a construção de uma capela.

Imediatamente transformava-se no centro da vida social e religiosa. Era o local do culto, da Missa, dos negócios, novidades e partilhas. A presença de um padre na comunidade, portanto, era determinante para os colonos definirem o local para fixar residência. Alguns, inclusive, somente adquiriam lotes após serem informados da existência de um padre no local.

Em 5 de fevereiro de 1944 foi instalada a Igreja Reitorada de São Miguel Arcanjo, na então Vila Oeste, anexa à Paróquia de Itapiranga, fundação dos jesuítas e colonos alemães gaúchos, e Pe. Aurélio, com menos de 30 anos, foi nomeado vigário paroquial. A capela tinha sido construída pelos colonos em 1943. Com a criação da paróquia São Miguel Arcanjo em 9 de abril de 1950, foi nomeado primeiro pároco, permanecendo no ofício até 1977. O Decreto de criação foi assinado pelo Bispo Prelado de Palmas do Paraná, que atendia a todo o Oeste catarinense, Dom Carlos Eduardo Sabóia Bandeira de Mello, OFM.

A opção de Pe. Aurélio pelo lugar se deu por sua vontade “de trabalhar com índios” que, naquele período, representavam 50% da população residente na Prelazia. Com a criação da Paróquia de São Miguel Arcanjo, os destinos de Padre Aurélio e dos moradores da região começavam a entrelaçar-se.

Deve-se fazer uma observação a respeito da situação demográfica do Oeste catarinense: antes das empresas de colonização gaúchas lotearem a região, essa era habitada por índios kaigang e por caboclos, muitos deles fugitivos da guerra do Contestado ou de punições em outros Estados. Para as empresas colonizadoras, a terra era livre, sem moradores. Pe. Aurélio, cujo ideal era trabalhar com os índios, rendeu-se à lógica da ocupação do solo. Os problemas de justiça para esse pobres ficaram adormecidos até a década de 1970 quando se tornaram evidentes e surgiu um Pastor que os defendesse, enfrentando calúnias e ameaças: Dom José Gomes (1921-2002).

Bom pastor e guia

A chegada a então Vila Oeste aconteceu em 5 de fevereiro de 1944 e quatro dias depois ali celebrou a Missa, pela primeira vez. Foi acolhido pela família Molin, que o hospedou por 18 meses. Nesse meio tempo foi construída a casa paroquial, pelos imigrantes italianos chamada de “casa canônica”.

Quando da chegada de Padre Aurélio em São Miguel do Oeste, havia 17 famílias

estabelecidas, totalizando 85 moradores, que enfrentavam uma prolongada estiagem que apresentava paisagem desoladora. Nas palavras do próprio sacerdote, uma visão nada animadora para quem chegava: “Foi preciso ter coragem para permanecer aqui, em vista da esperança no futuro”, escreveu.

E ali desempenhou as funções de padre, conselheiro, professor e médico visitando seus paroquianos, mesmo em lugares quase inacessíveis, atendendo-os sob quaisquer circunstâncias e a qualquer horário que o chamassem.

Exercendo o papel de médico pela ausência de médicos, estabeleceu a primeira farmácia, receitava remédios que conhecia, internava doentes na casa paroquial, às vezes em sua própria cama, dormindo então no chão, realizava pequenas cirurgias.

Era muito requisitado para bênçãos de crianças, doentes, bênçãos contra gafanhotos, ratos, tempestades. Não tinha limites na caridade para com os pobres. Simples, comia o que lhe apresentavam à mesa.

Conhecia a todos e, aos domingos, citava os que não estavam vindo à Missa. Era um grande pai, motivo pelo qual as pessoas ficavam envergonhadas, e não raivosas.

Suas desobrigas pelo grande território da paróquia, e também fora dele, chegavam a durar um mês. Quando ia a pé ou montado em burro ou cavalo, gostava de sair à noite caminhando pelo mato, pois não havia estradas. É bom lembrar que de São Miguel do Oeste saíram os municípios de Anchieta, Bandeirante, Barra Bonita, Guaraciaba, Paraíso e Romelândia. Visitava também Mondai, Dionísio Cerqueira e a paranaense Medianeira. Estafado pelo trabalho, pelas más condições de higiene e alimentação, antiga moradora conta que sempre retornava doente, ou debilitado.

Suas Missas eram breves: de 20 a 30 minutos, com sermão e tudo. Seu grande cuidado era a catequese das crianças. Gostava de ter um bom grupo de coroinhas, para os quais reservava uma bola de futebol e, no final da Missa, distribuía 200, 500 réis para os que tinham ajudado.

Com a construção de estradas, adquiriu um Jeep e, na década de 60, um Opala. Talvez pelos poucos reflexos da doença que nele se aninhava, nos últimos anos trocava freio por acelerador e batia bastante com o carro, mas se achando o melhor motorista.

Obras sociais – nova igreja matriz

Ao lado do atendimento próprio da vida paroquial, Pe. Aurélio preocupou-se em promover a saúde e a educação. A educação, pois sabia que toda a juventude local não teria condições de progresso sem freqüentar o ensino primário, ginasial e secundário.

Em 1950, Pe. Aurélio conseguiu a vinda das Irmãs do Instituto Jesus Maria José para a direção do Hospital Sagrado Coração de Jesus. Ele mesmo comprou e doou o terreno para o hospital com o dinheiro de uma herança. O povo colaborou na construção.

Em um segundo momento de sua história em São Miguel do Oeste, em 06 de fevereiro de 1959 as Irmãs passaram a atender ao setor educacional, e iniciaram a construção do Colégio. Em 4 de março de 1960, iniciaram as aulas para duas turmas de meninas: uma turma de 1ª série e uma do 5º ano. O Ginásio La Salle Peperi emprestou uma parte do prédio para que as Irmãs pudessem realizar seu trabalho até que o Colégio São José estivesse pronto.

No ano de 1954, a comunidade de São Miguel do Oeste uniu-se ao pároco na busca de solução para um Colégio que atendesse meninos e rapazes.

A convite do então Prefeito Municipal, Olímpio Dal Magro, e do Pe. Aurélio, em 25 de fevereiro de 1957, esteve em São Miguel do Oeste o Superior Provincial dos Irmãos Lassalistas, Ir. Agostinho Simão, para tratar da vinda da Congregação para esse estabelecimento de ensino. Os Lassalistas são especializados em educação. Em acordo com os Irmãos, foi escolhido um terreno de 22.000 m2. No dia 13 de fevereiro de 1958, foi feita a matrícula do primeiro aluno para o curso de admissão ao ginásio, sendo ele Roberto Luchesi. Estava inaugurado o Colégio La Salle Peperi.

Já em 1950 iniciaram-se as discussões para a construção de uma nova igreja matriz. Anos depois, um arquiteto e engenheiro paranaense elaborou o projeto, grandioso e caro. O preço pareceu absurdo e impossível. Foram feitas algumas mudanças e o projeto foi apresentado ao bispo Diocesano, D. Wilson Laus Schmidt, que o aprovou: igreja moderna, com quatro grandes arcos formando uma cruz grega. Pe. Danilo Link ficou encarregado de coordenar as obras da construção. Na época, foi uma das grandes obras do estado em volume de material utilizado. No início da década de 80 a nova Igreja foi inaugurada, e é o principal cartão postal de São Miguel do Oeste. Pe. Aurélio ficou magoado por não terem posto o Altar da Celebração no centro da igreja, conforme o projeto original e que seria lógico pelo formato de cruz grega.

O movimento emancipacionista – São Miguel do Oeste

Com o objetivo de defender os interesses coletivos e promover a criação do distrito, a 21 de agosto de 1949, grupo de habitantes da povoação e arredores reuniram-se no Salão Paroquial e fundaram a Sociedade Amigos de Vila Oeste. Pe. Aurélio foi o 1º Secretário da Comissão. Em 21 de dezembro de 1949 Vila Oeste tornou-se o 15º Distrito de Chapecó, desmembrado de Mondaí.

Em 30 de dezembro de 1953, a Assembléia legislativa criou o município de São Miguel do Oeste. Na primeira eleição, em 3 de outubro de 1954, Pe. Aurélio Canzi foi eleito vereador. Sua liderança era inconteste. Os políticos se reuniam em sua casa para traçarem programas. O município era sua casa.

Como continuavam a chegar levas de imigrantes do Rio Grande do Sul, Pe. Aurélio acompanhou o nascimento dessas novas comunidades. Podemos citar São José do Cedro – ali rezou a primeira missa no ano de 1950 e permaneceu como responsável espiritual até meados de 1956.

Guaraciaba – antes da chegada dos imigrantes, essas terras eram habitadas por indígenas e caboclos, mas, para as autoridades, isso não era problema porque eles não tinham documento de posse das terras. Foi na década de 1940 que iniciou a colonização das terras que hoje pertencem a Guaraciaba. Em 02 de setembro de 1945, Pe. Aurélio Canzi celebrou a primeira missa na nova localidade, dando-lhe o nome de Guaraciaba, que na língua Tupi-Guarani significa “Raio de Luz”. Reza a tradição que o nome se deve aos raios de sol que cortavam a mata fechada e iluminavam o local da Missa. 

Gaúcho – gauchismo e esporte

Padre Aurélio Canzi fazia questão de ser gaúcho e de promover o gauchismo: vestindo batina, bota, bombacha e revólver na cintura, lenço vermelho no pescoço, não admitia qualquer tipo de deslize de um gaúcho macho. Certa vez, em uma Missapassou um “pito” no delegado da cidade, porque havia visto o mesmo armado de sombrinha em um dia de chuva, acompanhado de uma senhora: gaúcho macho usa guarda-chuva e não sombrinha!

Uma grande confusão deu-se quando foi fundado o CTG Porteira Aberta, em 1956. O Pe. Aurélio ficou de doar um terreno da igreja para a construção. A coisa pegou fogo quando soube que o nome do CTG seria Anita Garibaldi. Tiezerini, antigo morador, conta: “Ele deu de dedo em todos nós e disse: ‘Ela foi p…! Mandou matar o marido e fugiu com o Garibaldi'”. Perguntado como havia sabido da história, Pe. Aurélio responde: “A cúria metropolitana de Florianópolis fez uma pesquisa e provou que Anita matou o marido para fugir com o Garibaldi” (essa pesquisa ainda não foi feita…). Por sugestão do próprio padre, o CTG foi batizado de Porteira Aberta. Foi o primeiro a ser registrado em Santa Catarina. O primeiro galpão foi erguido no terreno de 1.500 metros quadrados, doado pela igreja.

Inaugurado e 11 de janeiro de 1962, o Estádio Padre Aurélio Canzi pertence ao Clube Esportivo Guarani que foi fundado em 7 de setembro do ano de 1947 pelos colonizadores, com campo fora construído pelos mesmos, dirigidos e coordenados os trabalhos por Padre Aurélio, que doou parte central do campo para sua construção.

O final de uma rica existência

Em 1976, com apenas 61 anos, se manifestaram com força os sintomas do Mal de Alzheimer: passou a rezar Missa em latim, e lentamente ficou impedido para o ministério. Permaneceu em São Miguel do Oeste e, para celebrar, mandou construir a capela de São Gotardo, bairro da cidade, onde celebrou enquanto pode. Em 24 de abril de 1976, foi empossado como pároco Pe. Alpídio Magrin.

Pe. Aurélio Ângelo Canzi faleceu em 7 de junho de 1990, às 6h da manhã, quando tinha 75 anos de idade e uma história que se confundia com a Igreja e a comunidade de São Miguel do Oeste. Por sua vontade, seu jazigo está na Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, por ele construída e onde, a cada dia, dezenas de pessoas vêm rezar. Muitos ex-votos indicam graças alcançadas. Sua memória permanece viva no povo pelo qual deu a vida.

Pe. José Artulino Besen

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