Arquivo para categoria Advento e Natal

A SAGRADA FAMÍLIA – JESUS, MARIA E JOSÉ

O presépio é o centro do tempo natalino. As imagens e ornamentos trazem um encanto especial para quem ingressa nas nossas igrejas e se depara com aquela cena que nos traz à memória e aos sentimentos o dia do Natal. De modo especial, o maior encanto é reservado às crianças que contemplam a cena bimilenar do nascimento do Salvador. As crianças e os pobres vivem com mais intensidade a beleza dos arranjos natalinos, a cada ano oferecidos para serem contemplados por todos que buscam ver e conhecer a surpresa reservada no dia 25 de dezembro, sempre a mesma e sempre emocionando na sua beleza e pobreza. É a linguagem da fé nos falando ao coração, uma cena divina e humana.

O mistério do Natal acontece dentro do mistério da Sagrada Família. Não podemos celebrar a festa natalina deixando de lado a festa divina, do Deus que vem ao nosso encontro. Mais ainda, do Deus que quer ser humano, do Deus humilde e pobre que desce para estar conosco. Natal é encanto, é verdade, mas é muito mais: Deus quer ser como nós, não só para nos salvar, mas para viver humanamente a profundidade da pobreza e da humildade. Ele tem tudo, todo o poder e grandeza, mas deixa tudo isso para ser humano, ser como nós, ser pobre entre os pobres, entre os mais pobres. As Bem-aventuranças propostas por Jesus são a síntese concreta, o mostruário da vida simples e feliz de quem se decide a viver na alegria da vida verdadeira, plena, como o Senhor escolheu para si e como viveu na sua passagem pela Palestina, dentro da pobre Nazaré e sendo um humilde carpinteiro, ganhando o pão com o suor do rosto, como tantas pessoas que trabalharam com ele, contemplaram sua família e sua casa.

Tudo no Natal celebra a pobreza de Deus que nos envia seu Filho como um pobre entre os pobres. Maria, a pequena moça que recebe a visita do Anjo, que aceita a Palavra que se faz carne e carrega em seu seio por nove meses, guardando para si o segredo que inaugura um tempo novo, tempo central da história e do qual somente ela conhece a grandeza e o alcance profundo e misterioso: ela sabe o que está acontecendo e o que vai acontecer.

José, o carpinteiro nazareno, contempla silenciosamente a noiva que está grávida, preparando para ela e para o menino que vai nascer uma casa pobre e simples, cujo calor será o amor que os unirá, também ele recebe a visita do Anjo que lhe revela o mistério ainda oculto, mas que se desdobrará em grandeza e pequenez, na vida oculta onde tudo é humano e sagrado. Tomará parte, como pobre trabalhador, da humanização divina: ele e Maria estarão com Deus em seu meio, Deus estará com eles, na pequena e pobre casa de Nazaré.

É verdade que a criança divina nasceu em Belém, é verdade que receberam a visita dos pastores e magos, é verdade que foram ao Templo de Jerusalém, é verdade que fugiram para o Egito como tantos pobres fogem para terras desconhecidas. Mas agora estão em Nazaré, vivendo do trabalho de cada dia, vivendo no silêncio o sentido de suas vidas, do mistério que se revela dia por dia, ao longo de 30 anos, junto com os outros pobres em seu povoado. Deus aprende a ser humano, a Sagrada Família aprende a ser divina.

Maria e José silenciosamente acompanham o menino, o jovem, o adulto cuja vida cresce e que eles não podem saber quem é, pois os pobres são felizes em viver juntos, não em se aprofundar no conhecimento. O mistério é sempre mistério, o amor é sempre profundo e na pobreza se desdobra a cada dia como surpresa, novidade, riqueza que brota no estar juntos.

Deus Pai contempla sua Família, Jesus, Maria e José, nela contempla a humanidade e nela também se contempla: Jesus, o filho humano e pobre vive com eles, trabalha pelo pão de cada dia, na humildade sem fim de quem o chama de Pai, e a Maria e José a quem dá o nome de pai e mãe. A pobre Nazaré abriga a pobre família, uma família pobre como tantas outras, manifestando a grandeza simples e humilde de quem quer viver nossa vida – Deus.

Pe. José Artulino Besen

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A LUZ QUE ILUMINOU A NOITE – NASCEU JESUS

Em Belém de Judá nasce o Salvador

Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Todos iam alistar-se, cada um na sua cidade. Também José subiu da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém, porque era da casa e família de Davi, para se alistar com a sua esposa Maria, que estava grávida. Estando eles ali, completaram-se os dias dela. E deu à luz seu filho primogênito e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2,1-7).

Sinta a simplicidade desta cena acompanhando a descrição da vidente Teresa Neumann (†1962): vencendo as barreiras do tempo, teve a graça de poder contemplar estes dias decisivos da história humana, agora história divina pela presença real do próprio Filho de Deus: “José fala a Maria que, por ordem de César Augusto, deve partir para Belém, para o recenseamento do Império. Como deveria ser na cidade natal, partiria logo. Maria esperava o parto para os próximos dias, por isso a ordem era dolorosa. José achou que seria muito pesado para Maria e propôs ir sozinho. Maria respondeu que Deus ajudaria e se deveria obedecer às autoridades. Prepararam-se para a viagem.

Como animal de transporte e ao mesmo tempo cavalgadura pegaram uma asna, pois assim teriam leite. Colocou-se sobre ela a tenda cinzenta, juntamente com um cobertor cinzento de lã. O resto da bagagem foi pendurado no lado da asna, à esquerda um pacote que continha um cobertor de lã para José e, dentro dele, pão, frutas e um vestido quente para Maria. À direita havia dois pacotes: um menor, com uma coberta de lã que poderia ser cortada em pedaços para fazer paninhos; dentro dela, havia também blusinhas e paninhos para o bebê que estava para nascer. O outro pacote continha uma roupa quente para Maria e mais alimento. Horizontalmente, estavam fixados os três paus da tenda

Partiram pelas 6 da manhã de 22 de dezembro.  Maria montou no jumento, com os pés para a esquerda. José ia à frente puxando o animal pelas rédeas e tendo às mãos um bastão. Usava uma veste amarela e um manto marrom. Maria vestia um quente manto azul escuro, uma veste marrom avermelhado e um xale de lã amarelo sob o manto. O tempo era frio e chuvoso e as estradas estavam ruins e lamacentas. O dia de viagem foi bom. Pela noite, José armou a tenda e ali dormiram sobre as cobertas que tinham trazido.

23 de dezembro: Maria e José partiram pelas 5 da manhã. Viajaram sem parar até ao meio-dia. Para não cansar o animal, de vez em quando Maria andava um pouco a pé. Pelo meio-dia, Maria estava cansada. Ficaram felizes quando ao longe avistaram uma casa. Foram muito bem acolhidos por um casal idoso. Viram o estado de Maria, pálida, mas muito sã e lhes ofereceram comida quente. Seguindo adiante, dormiram a segunda noite num pequeno abrigo, pagando o alojamento.

24 de dezembro: pelas seis da manhã, a viagem prosseguiu. Pelo meio-dia o jumento, cansado, andava com dificuldade e numa pequena propriedade receberam pasto para ele. O tempo continuava chuvoso e frio. Ao anoitecer estavam às portas de Belém, que tinha então aproximadamente 1.100 habitantes. Já estavam acesas fogueiras pela estrada. Grandes pedras serviam de calçamento, e eram escorregadias. José entrou numa casa e Maria ficou segurando o jumento. José logo saiu, comunicando a Maria que não havia alojamento. Na próxima casa, a mesma resposta. José foi adiante e chegou à casa onde tinha nascido e na qual deveria se recensear. Muita gente, e por isso José deixou para o dia seguinte.

Maria pediu que José se apressasse pois sua hora estava chegando. Escureceu totalmente. A um homem gentil, José perguntou onde poderia se abrigar com Maria. Com pesar respondeu que não adiantaria procurar na cidade, mas disse-lhes para se dirigirem ao setor sul da cidade e, saindo dela, encontrariam uma estrebaria dele, onde consentiria que se instalassem. José acendeu o candeeiro para poderem caminhar e, finalmente, entraram na estrebaria, quando era oito da noite. Era construída junto a uma colina, junto a uma caverna que se abria na rocha. O teto era de madeira e igualmente as paredes laterais. Na parede direita, uma pequena janela. José amarrou o jumento num pau e mais tarde num outro pau perto do menino, para que o aquecesse. Pendurou a lâmpada no centro do teto. Em seguida preparou o leito para Maria e para si. Para Maria estendeu sobre a palha a tela da tenda e a coberta cinza de lã. Para si, uma coberta de lã e palha. Maria dormiria à direita do estábulo e ele à esquerda. O céu estava coberto de nuvens.

– 24-25 de dezembro: o nascimento de Jesus foi pela meia-noite do dia 24 para o dia 25. Pelas 23h Maria entra em êxtase. Permanece ajoelhada e com os braços cruzados sobre o peito. Pela meia-noite o Menino divino deixa o ventre materno que imediatamente se fecha. José tinha enchido uma manjedoura de palha: embaixo, palhas de trigo e encima juncos macios. Tinha um metro de comprimento e nela Maria colocou o neném, depois de enxugá-lo, envolvê-lo em paninhos, coberto com uma blusinha de manga comprida e de um coberta de lã. Depois rezaram, ajoelhados, cada um num lado. José com as mãos juntas e Maria com os braços em cruz. Quando Jesus nasceu o céu ficou limpo e cheio de estrelas”.

Um filho em Israel

Os judeus sempre consideraram os filhos como uma bênção: “Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre sua recompensa”. O nascimento era o mais feliz de todos os acontecimentos. Toda a vizinhança era avisada e se preparava uma festa. O mais humilde dos casais sentia a alegria de proclamar com Isaías: “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado”. O primogênito era ainda mais motivo de festa pois seria o futuro da família e o herdeiro dos deveres e direitos, recebendo a herança em dobro.

As mulheres de Israel davam à luz com facilidade, rindo das egípcias que, para elas, faziam muita complicação. Havia parteiras, mas a mulher judia sabia se arranjar perfeitamente sem elas, como Maria o fez no estábulo. Maria deu à luz o menino, amarrou o cordão umbilical e o cortou.

O primogênito de Maria e José não teve a festa da vizinhança, dos parentes e amigos, das crianças de Nazaré. Estavam sozinhos, na noite de Belém, a mais luminosa de todas as noites. De jeito nenhum, o pai podia assistir ao parto. Ficava fora até que alguém lhe comunicasse a notícia. Então entrava e o colocava sobre os joelhos, reconhecendo oficialmente sua legitimidade.

Maria seguiu a tradição de seu povo: apenas a criança estava com o cordão umbilical amarrado e cortado, chamou a José que entrou, sentou-se e colocou o bebê em seus joelhos: o filho de Maria era também seu filho.

Transfigurada pelo momento que estava vivendo, emocionada ao ver José com aquela criaturinha indefesa, chorando, coberta pelos líquidos da placenta, Maria lhe fala: “José, meu Filho único, que será adorado por todos os anjos e por todos os homens, seria por todos desprezado como ilegítimo se não soubessem que tu és seu pai. Tu és meu esposo, tu és o pai de quem acabei de dar à luz. Nós viveremos seguros à sombra de tua proteção”.

Em seguida o menino foi lavado, esfregado com sal para endurecer a pele e enrolado em panos. Fazia frio em Belém.

O anúncio dos anjos aos pastores

“Havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam o seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu ao redor deles, e tiveram grande temor. O anjo disse-lhes: ‘Não temais, eis que vos anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo: hoje vos nasceu na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.’ E subitamente ao anjo se juntou uma multidão do exército celeste, que louvava a Deus e dizia: ‘Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens por ele amados!’

Depois que os anjos os deixaram e voltaram para o céu, falaram os pastores uns para os outros: ‘Vamos até Belém, e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou’. Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o Menino deitado na manjedoura. Vendo-o, contaram o que se lhes havia dito a respeito deste Menino. Todos os que os ouviam admiravam-se das coisas que lhes contavam os pastores” (Lc 2,8-18).

Nessa noite, num profundo silêncio, um menino nos foi dado, o Cristo Senhor. Quando o dia amanheceu, nova luz apagava as trevas, resplandecia o dia eterno.


Pe. José Artulino Besen

 

 

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FRANCISCO – «QUINZE DOENÇAS NA IGREJA»

cardeais-e-bispos

Aquele encontro de 23 de dezembro de 2014 seria um encontro formal, dentro dos costumes seculares da Cúria romana, onde o Papa saudaria e agradeceria a todos os cardeais, bispos e monsenhores, desejaria um Feliz Natal e encerraria com a bênção apostólica. Francisco, porém, quis fazer dele um ato penitencial pré-natalino e, para facilitar, ofereceu a lista de pecados para o exame de consciência: elencou 15 doenças eclesiásticas que devem ser extirpados na Cabeça e no Corpo da Igreja que se deve reformar. A raiz das doenças dos homens religiosos está em cair na tentação-chave: a do poder, tentação que o demônio apresentou a Cristo, mas foi rejeitado. A sede de poder torna os homens de Igreja capazes da velhacaria, da calúnia. Francisco conhece os homens que o cercam nos corredores apostólicos, muitos deles santos e devotados, e muitos deles carreiristas em oposição surda à reforma que ele está empreendendo, e que levará a cabo. Na história da Igreja, sempre que se fala em reforma surge a oposição dos mais poderosos, pois não é possível reforma sem a perda de privilégios ou abandono de vícios próprios de uma burocracia.

Se olharmos as 15 doenças da alma, teremos a oportunidade de contemplar a imagem que Francisco tem da Igreja “corpo místico de Cristo” e das manchas que se grudaram em seu corpo e o impedem de contemplar sua beleza e simplicidade. São doenças que fazem da Cúria um poder em si, auto-centrado, sem conexão vital autêntica com Cristo. Em outras palavras: o Papa quer conduzir a burocracia eclesiástica à sua verdadeira natureza de corpo comunitário a serviço da Igreja universal. Segundo Enzo Bianchi, prior de Bose, “tudo em Francisco ecoa o Evangelho e sua paixão pelo Evangelho leva-o a medir a vida da Igreja e de cada membro seu a respeito da fidelidade ao Evangelho.

Quanto mais Francisco percorrer essa estrada de recondução ao Evangelho mais sentirá o despertar de forças demoníacas que agem na história, e o resultado para os verdadeiros crentes será o aparecer da cruz de Cristo. A reforma não facilitará a vida cristã, mas ensinará que somente se pode seguir Jesus na rejeição e na perseguição, e ninguém colherá sucessos mundanos se encarnar a mensagem do Senhor”.

O ataque do Papa às “doenças” curiais é sinal das dificuldades que encontra em seu projeto reformador. Nós, que estamos longe, percebemos apenas sua figura simples, misericordiosa e não podemos avaliar o forte oposição dentro da Cúria, onde é minoria, e nos episcopados dos cinco continentes, na maioria fascinados pelas estruturas de poder e acomodação. Sente a oposição de tantos que se contentam com abstrações doutrinais com a convicção de poder engaiolar o Espírito Santo. São os fariseus eclesiásticos, isto é, os que se contentam em cumprir o dever não necessitando olhar o próximo, e que se esquecem que o Espírito Santo é novidade, imprevisto, fantasia, juventude.

A oposição ao Papa se situa naqueles que preferem o Papa-monarca que garante a imutabilidade da Corte e deixa a máquina do poder funcionar de acordo com normas seculares. Alguns, entre cardeais, bispos, monsenhores acusam Francisco de trair sua “missão eterna”, até duvidando de sua legitimidade como papa. São João XXIII experimentou pessoalmente essa sabotagem à sua obra reformadora e as contínuas maledicências com relação à sua pessoa. Francisco experimenta também diariamente nos sites da web que, mês após mês, instilam veneno para desacreditar seus projetos. Numa requisição venenosa, o intelectual cristão Vittorio Messori se refere ao Papa como “aquele homem que saiu do Conclave vestido de branco”, pois sente saudade do tempo em que era “importante” na Igreja, quando entrevistou São João Paulo II e o Cardeal Ratzinger. Muito estranha também a declaração do Cardeal Scola, de Milão, afirmando que nada mudará com relação à comunhão aos divorciados, até porque os que pensam diferente são minoria no Sínodo. Em outras palavras: o Papa perde tempo e está em minoria. Um grupo de cardeais da Cúria colocou em dúvida a consistência teológica de Francisco, pois não entendem – ou não querem entender – o sentido da renovação em marcha. Também não admitem um Papa “que veio do fim do mundo”, esquecendo que a Igreja hoje é majoritária na Ásia, África e América Latina. É o mesmo argumento insidioso que jogaram contra São João XXIII: “o papa tem boa intenção, mas capenga na doutrina”. Esquecem que Jesus ordenou a Pedro apascentar as ovelhas e não ser catedrático em teologia. Bento XVI atuou mais como catedrático de teologia do que como pastor, e não triunfou. A hierarquia se empenhou mais em impor a pureza doutrinal do que em animar a vivência da fé. A bem da verdade, deve-se dizer que João XXIII e Francisco são teólogos, dotados de consistência teológica irrefutável. Foi eminentemente pastoral o exame de consciência que apresentou a uma assustada platéia na Sala Clementina.

Francisco fala na tradicional reunião natalina com a Cúria romana

Francisco fala na tradicional reunião natalina com a Cúria romana

FRANCISCO E AS DOENÇAS DA CÚRIA ROMANA

Francisco declarou: “seria belo pensar na Cúria romana como um pequeno modelo da Igreja, como um corpo que diariamente se esforça para ser mais vivo, mais harmonioso e mais unido entre si e com Cristo”. A Cúria, como a Igreja, não pode viver “sem uma relação vital, pessoal, autêntico e firme com Cristo”. “Um membro da Cúria que não se alimenta diariamente com esse alimento se transforma num burocrata”.

Cairíamos nas mesmas doenças se não aplicarmos o exame de consciência às nossas estruturas diocesanas e paroquiais. Todos somos chamados à contínua reforma e à confissão dos pecados que Francisco nos propõe:

  1. Sentir-se imortal, indispensável – uma Cúria que não faz autocrítica, que não procura renovar-se é um corpo doente. Doença dos que se sentem imunes, indispensáveis, que se transformam em patrões e se sentem superiores. Tem origem na patologia do poder, no “complexo dos eleitos”, no narcisismo.
  2. Excessiva operosidade – mergulham no trabalho, ativismo e esquecem “a parte melhor”, sentar-se aos pés de Jesus.
  3. Petrificação mental e espiritual –  quando se perde a serenidade interior, a vivacidade e a audácia, e se esconde sob papéis, transformando-se em “máquina de práticas” e não em homens de Deus, incapazes de “chorar com aqueles que choram e se alegrar com os que se alegram!”.
  4. O excessivo planejamento – quando o apóstolo planeja tudo minuciosamente achando que desse modo as coisas progridem, assim tornando-se um contador ou comerciante. É bom que se prepare tudo, mas não cair na tentação de querer encaixotar e pilotar a liberdade do Espírito Santo.
  5. A má coordenação – doença própria dos que perdem a comunhão recíproca e então o corpo enfraquece a harmoniosa funcionalidade, transformando-se numa orquestra que produz apenas barulho, porque seus membros não colaboram nem vivem no espírito de comunhão e de time.
  6. O Alzheimer espiritual – é o declínio progressivo das faculdades espirituais e que produz graves deficiências na pessoa, fazendo-a viver num estado de absoluta dependência de suas visões muitas vezes imaginárias. É a doença de quem “perdeu a memória” de seu encontro com o Senhor, de quem depende doas próprias “paixões, caprichos e manias”, de quem constrói muros e hábitos em torno de si.
  7. A rivalidade e a vanglória – doença de quando as aparências das vestes e as insígnias se tornam o objetivo primário da vida. É a doença que nos leva a ser homens e mulheres falsos e leva a viver um falso “misticismo” e um falso “quietismo”.
  8. Esquizofrenia existencial – doença daqueles que vivem “uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do progressivo vazio espiritual que láureas ou títulos acadêmicos não podem preencher”. Atinge mais aqueles que “abandonando o serviço pastoral, se limitam a ações burocráticas, perdendo assim o contato com a realidade, com as pessoas concretas. Deste modo criam seu mundo paralelo onde põem de lado tudo o que ensinam severamente aos outros” e levam uma vida “oculta” e muitas vezes “dissoluta”.
  9. Fofocas e intrigas – doença que toma conta da pessoa fazendo-a tornar-se “semeadora de cizânia” (como satanás), e em tantos casos “homicida a sangue frio” da fama dos próprios colegas e confrades. É a doença das pessoas velhacas que não têm coragem de falar diretamente e preferem falar pelas costas.
  10. Divinizar os chefes – doença daqueles que “cortejam os superiores”, vítimas do “carreirismo e do oportunismo” e “vivem o serviço pensando unicamente naquilo que devem obter e não naquilo que devem fazer”. Pessoas mesquinhas, inspiradas apenas em seu fatal egoísmo. Também atinge os superiores “quando cortejam alguns colaboradores seus para obter sua submissão, lealdade e dependência psicológica, mas o resultado final é uma verdadeira cumplicidade”.
  11. Indiferença diante dos outros – “quando alguém pensa somente em si mesmo perde a sinceridade e o calor das relações humanas”. Não coloca seu conhecimento ao serviço dos menos preparados. Por ciúme ou safadeza, sente alegria em ver o outro cair ao invés de levantá-lo e encorajá-lo.
  12. A cara fúnebre – doença das pessoas que julgam ser necessário, para ser sérios, ter o rosto triste, melancólico, severo, e tratar os outros com rigidez, dureza e arrogância. “A severidade teatral e o pessimismo estéril geralmente são sintomas de medo e de insegurança. O apóstolo deve ser uma pessoa cortês, serena, entusiasta e feliz e que transmite alegria”.  Humor e auto-ironia são sinais saudáveis.
  13. Acumular – é quando o apóstolo busca preencher o vazio existencial no seu coração acumulando bens materiais, não por necessidade, mas somente para sentir-se seguro.
  14. Grupos fechados – quando pertencer ao grupinho se torna mais importante do que pertencer ao Corpo e, em algumas situações, ao próprio Cristo. Também essa doença tem início com boas intenções, mas com o passar do tempo escraviza os membros tornando-se um câncer.
  15. Proveito mundano, exibicionismos – “quando o apóstolo transforma seu serviço em poder, e seu poder para obter proveitos mundanos ou mais poder. Doença das pessoas que buscam insaciavelmente multiplicar poderes e para isso são capazes de caluniar, difamar e desacreditar os outros, até em jornais e revistas. Naturalmente, fazem-no para exibir-se e demonstrar-se mais competentes do que os outros”. Doença que faz muito mal ao corpo, porque leva as pessoas a justificar o uso de qualquer meio para atingir tal finalidade, às vezes em nome da justiça e da transparência.

Como seria bom se cada cristão se examinasse diante das 15 doenças diagnosticadas por Francisco. Se optarmos por “achar graça” da Cúria romana, nossa vida diocesana, paroquial e comunitária será contaminada pelos mesmos males.

Pe. José Artulino Besen

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NATAL – SACRIFÍCIO DE COMUNHÃO

 

Deus vem ao nosso encontro - políptico de Lorenzo Veneziano - detalhe

Deus vem ao nosso encontro – políptico de Lorenzo Veneziano – detalhe

Ghislain Lafont, beneditino e teólogo, sentiu a necessidade de estudar e comentar o tema da obediência em Gênesis 2, 16-17: “O Senhor Deus deu-lhe uma ordem, dizendo: ‘Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas, da árvore do conhecimento do bem e do mal não deves comer, porque, no dia em que dele comeres, com certeza morrerás’”. Lafont se pergunta: por que Deus dá com uma mão e retira com outra? Será que uma árvore entre tantas teria tamanha importância? O que Adão teria pensado ao receber ordem tão ameaçadora? Seria apenas um capricho divino?

Ainda na posse da graça original, Adão entendeu que não estava em jogo o que comer ou não comer, mas a identidade de quem lhe dava o mandamento com autoridade, e o demonstra no momento da tentação, quando o tentador lhe revela o benefício do comer da árvore: ‘Sereis como Deus’, de modo algum morrereis (cf. Gn 3, 4-5). Morrer significa perder a identidade, a existência. Decidir comer do fruto é querer ser como Deus, é perder o medo de morrer, é existir sem nada dever a outro. G. Lafont expõe o tema da obediência, palavra latina que tem origem em obaudire, escutar. Escutar/obedecer sempre incluem uma renúncia, um limite, não para limitar e sim para criar comunhão, relação. A comunhão não existe sem o sacrifício, sem a perda para se receber o dom. Não há relação entre duas pessoas se permanecerem exatamente o que sempre foram.

Perder para receber é inseparável do sacrifício: ofereço algo para receber em troca, não por atitude interesseira, mas movido a uma doação que me fará comungar com o outro. Sempre é sacrifício de comunhão. G. Lafont resume[1]: Deus me fala, eu escuto e aceito o sacrifício da obediência para receber a comunhão.

O sacrifício de comunhão inaugura a história da salvação, a história de Deus que continua a apresentar palavras/limite ao homem a fim de que possa oferecer-lhe o dom da comunhão. O pecado dos primeiros pais foi a rejeição da obediência, da escuta e, deste modo, perderam o dom da relação, dom necessário para a existência humana que é também divina, incompatível com o viver solitário. Nossos primeiros pais agiram para nunca morrerem, e colheram a morte. Julgaram ser apetitoso viver sem escutar, escutar sem obedecer.

O Deus criador fez-nos à sua imagem e semelhança: a imagem sempre está presente, mesmo no pecado, e a semelhança oferecida como projeto[2]. Deu-nos sua imagem, mas no próprio ato da criação colocou a necessidade de querermos ser semelhantes a ele numa resposta progressivamente empenhativa e positiva, onde um sacrifício é necessário para estabelecer o diálogo, porque não há comunhão sem a dor da obediência, fruto da escuta, e não há semelhança possível sem a doação.

Antes da primeira prova, porém, Deus criou a mulher, porque não é bom que o homem esteja só (cf. Gn 3, 18). Além da palavra/limite dada por Deus, o homem e a mulher também se trocam palavras/limite para que exista a comunhão e assim, nossa vida é humana à medida que somos capazes de dar e receber obediência, e se torna desumana à proporção que negamos ao outro uma escuta com renúncia.

Quando se fala da relação entre as pessoas, entre Deus e nós, há sempre a dor, e o fundo, a substância da dor é a luta do amor. Ao amar, estou afirmando que o outro existe e o outro reconhece minha existência ao me amar, o que não acontece sem o sacrifício de escutar uma palavra e aceitá-la. O amor é sempre gerado pelo diálogo entre a doação e o dom.

Evidentemente que nos esforçamos para obedecer aos limites colocados por Deus e crescemos em sua amizade, porém, num sacrifício e obediência sem fim, recebendo continuamente novas palavras de Deus, numa história cujo fruto maduro é o amor e o fim a santidade.

natal

O Natal, dom do Pai – a Páscoa, dom do Filho

O Natal simboliza a doação sem limite que nos traz dom sem limite. Conduzindo seu povo no deserto e Oriente próximo sob a guia de Moisés, Juízes, reis e profetas, Deus pediu sempre mais porque sempre mais oferecia, num amor/doação cujo limite é o ilimitado. E assim, a humilde palavra no Paraíso se estendeu ao mundo, a toda a história.

Através do Anjo, Deus apresenta uma palavra/sacrifício a Maria de Nazaré, dela escuta o sim integral de uma serva.  Nova palavra é apresentada, e agora é a Palavra, o Filho que diz sim ao Pai e vem habitar entre nós, assumindo a condição humana pelo sim de Maria. O sim doloroso de José lhe traz o dom da paternidade. O sim dos Magos lhes oferece a adoração.

A história prossegue com Jesus, o Deus encarnado apresentando palavras de vida ao povo da Galiléia, com seus gestos descrevendo as palavras de sacrifício que o Pai pede a fim de poder entrar em comunhão com os pobres, os pecadores e os doentes. Aqueles que não o aceitaram se privaram do dom da comunhão, e os que o receberam foram agraciados com a vida eterna (cf. João 3, 16-21).

Jesus, doação do Pai ao mundo, quer ser um sim sem limite para oferecer-lhe toda a criação. Do mesmo modo que o Pai nos deu seu Filho, o Filho se dá ao Pai por nós em doação total, na entrega de sua humanidade ferida pela dor, a humilhação e a morte. O sacrifício da cruz não foi para expiar nossos pecados, como se o Pai tivesse usado uma balança de dor para medir a dívida da humanidade. Foi, isso sim, o encontro efetivo do Filho encarnado com Deus, a quem se doa totalmente e recebe o dom da salvação para todos que o procuram com sinceridade.

Voltemos às origens, onde é decidida nossa vida: se quisermos ser humanos, e não uma criatura como as outras, escutaremos do Pai um pedido de sacrifício/obediência que, sendo aceito, nos colocará em comunhão com ele e seremos pessoas. O Natal nos lembra esse pedido, para que ingressemos na relação amorosa com Deus, a cada dia mais intensa. O fruto generoso a nós doado é o Salvador.

Pe. José Artulino Besen

[1] Cr. Texto publicado em Lumière et Vie, 62 (2013) 4, n. 300, 6-21.
[2] O tema foi tratado por Irineu de Lyon no Adversus Haereses, de modo belo afirmando que entre esses dois termos – imagem e semelhança – se desenvolverá toda a vida espiritual do homem, que recebeu a perfeição em germe, devendo amadurecê-la. A imagem, o homem possui para sempre (o pecado não a suprime). O essencial é fazer a passagem para a “semelhança”.

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O COLÍRIO DA FÉ E A LUZ DO MUNDO

Vitral-Elia-Kurzum-Jordania

«Vem, Senhor Jesus» (vitral de Elia Kurzum – Jordânia)

«Realmente o Senhor faz os cegos verem. Os nossos olhos, irmãos, são agora iluminados pelo colírio da fé. Para restituir a vista ao cego de nascença, o Senhor começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra. Ele misturou sua saliva com a terra: E a Palavra se fez carne e habitou entre nós».

(Jo 1,14 – Santo Agostinho, Tract. 8-9).

Essa palavra de Santo Agostinho é muito apropriada para iniciarmos o tempo do Advento, no qual esperamos a vinda do Senhor em Belém e sua vinda gloriosa no final dos tempos. É tempo para purificarmos nossa visão, limpar nossos olhos com o colírio da fé a fim de sermos capazes de discernir entre o olhar do mundo e o olhar de Deus.

O olhar segundo o mundo nos priva da liberdade e da subjetividade, pois nos quer como multidão arrastada pela moda, pelo consumismo, pelo prazer. Quanto menos vivermos a liberdade dos filhos de Deus mais seremos vítimas dos arrastões de comportamento que nos levam ao individualismo, proposto como verdadeira inteligência: “eu gosto, então é verdade”.

A vida em comunidade, que é comunhão de pessoas, permite-nos olhar a história pessoal e do mundo de forma solidária: “é bom para meus irmãos e para mim, então é caminho de verdade”. Dessa forma, eu não sou ameaça a ninguém, nem sou ameaçado por alguém, não sou “vaquinha de presépio”, mas pessoa em diálogo com pessoas.

O colírio da fé, necessário no Advento, abre nossos olhos para contemplarmos o olhar divino sobre a história: Deus, ele sim, o Criador e Pai, oferece-nos a palavra que gera comunidades: o amor que se multiplica no amor fraterno, materno, filial, esponsal, nunca um pervertido amor interesseiro cuja origem e destino são o meu egoísmo.

O mundo faz o ego agigantar-se, e se gloria disso, enquanto que o amor faz-me pequeno para que possa crescer com todos, partindo dos mais frágeis, numa felicidade que é gerada no sentir minha capacidade de ver o outro a partir de Deus, da comunhão de vida.

Os meios de comunicação são pródigos em apresentar e propagar os egos de artistas, de pretensos intelectuais, como modelos de vida e de comportamento, a oferecerem respostas para tudo em meio a um balé executado ao som de cretinices e pseudo-soluções. Quanto mais escandalosa a resposta, mais animado o bailado. Apresentam resultados de pesquisas como se fossem revelações divinas, numa moda traiçoeira que leva os ingênuos a julgarem que, se a maioria aprova, então está certo. Os dogmas da fé são apresentados como frutos do passado ingênuo e são substituídos por outros dogmas, bem mais exigentes, porque nos colocam na moda: os dogmas das estatísticas, das pesquisas.

O dado matemático suplantou o dado revelado. Deus é excluído da vida e, como não se vive sem algum deus, seu lugar foi ocupado pelo deus do palpite, do vazio interior. Não o Deus que se revela na História humana e cósmica, mas o deus dos prazeres que duram pouco mais que um dia e logo dão lugar a outros. Hoje como ontem: no lugar de Deus que o libertara da escravidão do Egito, o povo de Israel adorou um bezerro feito de ouro. E cantou e se divertiu e blasfemou, esquecendo de olhar as serpentes venenosas que se aproximavam para picá-lo (cf. Êxodo 32, 1-35; Números 21, 4-9). A beleza da serpente escondia seu veneno.

A Palavra de se fez carne

Para curar o cego de nascença, Senhor começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra, explicou Agostinho. Ele misturou sua saliva com a terra: para que a cegueira fosse vencida, o Senhor uniu a divindade com a humanidade e, desse modo, o homem recupera a luz de seus olhos unindo a terra ao céu, o divino ao humano e, foi para isso que a Palavra se fez carne e habitou entre nós, para recuperar nossa imagem e semelhança, criando a comunhão Deus-Terra-Homem.

O tempo do Advento é o tempo da memória, tempo da invocação, tempo da espera do Senhor. Memória do que o Senhor realiza pela nossa salvação, invocação para que venha em nós e em toda a criação, espera feliz de sua chegada hoje e na consumação dos tempos, quando virá cheio de glória para julgar os vivos e os mortos.

Não devemos achar que o mundo está bom, que nossa vida já é boa o suficiente. Queremos muito mais, porque o Senhor oferece bens muito superiores e, acima de tudo, queremos que ele venha manifestar sua glória entre nós, conforme sua promessa.

Marana thá! Vem, Senhor! é a mais antiga oração cristã e está inserida na Liturgia eucarística logo após a consagração das espécies: o Senhor vem, e pedimos ainda mais, que venha sempre.

À pergunta “quem é o cristão?” São Basílio Magno responde para nós: “O cristão é aquele que permanece em vigília a cada dia e a cada hora, pois sabe que o Senhor vem”.

Pe. José Artulino Besen

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