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A SAGRADA FAMÍLIA – JESUS, MARIA E JOSÉ

O presépio é o centro do tempo natalino. As imagens e ornamentos trazem um encanto especial para quem ingressa nas nossas igrejas e se depara com aquela cena que nos traz à memória e aos sentimentos o dia do Natal. De modo especial, o maior encanto é reservado às crianças que contemplam a cena bimilenar do nascimento do Salvador. As crianças e os pobres vivem com mais intensidade a beleza dos arranjos natalinos, a cada ano oferecidos para serem contemplados por todos que buscam ver e conhecer a surpresa reservada no dia 25 de dezembro, sempre a mesma e sempre emocionando na sua beleza e pobreza. É a linguagem da fé nos falando ao coração, uma cena divina e humana.

O mistério do Natal acontece dentro do mistério da Sagrada Família. Não podemos celebrar a festa natalina deixando de lado a festa divina, do Deus que vem ao nosso encontro. Mais ainda, do Deus que quer ser humano, do Deus humilde e pobre que desce para estar conosco. Natal é encanto, é verdade, mas é muito mais: Deus quer ser como nós, não só para nos salvar, mas para viver humanamente a profundidade da pobreza e da humildade. Ele tem tudo, todo o poder e grandeza, mas deixa tudo isso para ser humano, ser como nós, ser pobre entre os pobres, entre os mais pobres. As Bem-aventuranças propostas por Jesus são a síntese concreta, o mostruário da vida simples e feliz de quem se decide a viver na alegria da vida verdadeira, plena, como o Senhor escolheu para si e como viveu na sua passagem pela Palestina, dentro da pobre Nazaré e sendo um humilde carpinteiro, ganhando o pão com o suor do rosto, como tantas pessoas que trabalharam com ele, contemplaram sua família e sua casa.

Tudo no Natal celebra a pobreza de Deus que nos envia seu Filho como um pobre entre os pobres. Maria, a pequena moça que recebe a visita do Anjo, que aceita a Palavra que se faz carne e carrega em seu seio por nove meses, guardando para si o segredo que inaugura um tempo novo, tempo central da história e do qual somente ela conhece a grandeza e o alcance profundo e misterioso: ela sabe o que está acontecendo e o que vai acontecer.

José, o carpinteiro nazareno, contempla silenciosamente a noiva que está grávida, preparando para ela e para o menino que vai nascer uma casa pobre e simples, cujo calor será o amor que os unirá, também ele recebe a visita do Anjo que lhe revela o mistério ainda oculto, mas que se desdobrará em grandeza e pequenez, na vida oculta onde tudo é humano e sagrado. Tomará parte, como pobre trabalhador, da humanização divina: ele e Maria estarão com Deus em seu meio, Deus estará com eles, na pequena e pobre casa de Nazaré.

É verdade que a criança divina nasceu em Belém, é verdade que receberam a visita dos pastores e magos, é verdade que foram ao Templo de Jerusalém, é verdade que fugiram para o Egito como tantos pobres fogem para terras desconhecidas. Mas agora estão em Nazaré, vivendo do trabalho de cada dia, vivendo no silêncio o sentido de suas vidas, do mistério que se revela dia por dia, ao longo de 30 anos, junto com os outros pobres em seu povoado. Deus aprende a ser humano, a Sagrada Família aprende a ser divina.

Maria e José silenciosamente acompanham o menino, o jovem, o adulto cuja vida cresce e que eles não podem saber quem é, pois os pobres são felizes em viver juntos, não em se aprofundar no conhecimento. O mistério é sempre mistério, o amor é sempre profundo e na pobreza se desdobra a cada dia como surpresa, novidade, riqueza que brota no estar juntos.

Deus Pai contempla sua Família, Jesus, Maria e José, nela contempla a humanidade e nela também se contempla: Jesus, o filho humano e pobre vive com eles, trabalha pelo pão de cada dia, na humildade sem fim de quem o chama de Pai, e a Maria e José a quem dá o nome de pai e mãe. A pobre Nazaré abriga a pobre família, uma família pobre como tantas outras, manifestando a grandeza simples e humilde de quem quer viver nossa vida – Deus.

Pe. José Artulino Besen

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NOSSO PAI E A LEMBRANÇA DELE NO DIA DOS PAIS

Artulino Besen

Artulino João Besen

Hoje, dias dos pais, decidi falar do pai para que meus irmãos e eu o recordemos com gratidão e para que meus sobrinhos, um belo ninho de 33 jovens e bebês, possam conhecê-lo e sentir a herança humana e cristã que nos legou. Ele amava crianças. Quando lhe perguntei se aceitava a morte, respondeu que teria muita pena de deixar as crianças.

O pai Artulino João Besen era filho de João Antônio Besen e de Catarina Zimmermann e nasceu no Rachadel de Antônio Carlos em 10 de janeiro de 1920. Era criança quando o pai dele decidiu levar a família para Antônio Carlos, sendo a primeira família que se “arriscou” a ir morar no meio dos “brasileiros” do Alto Biguaçu. Ali, onde hoje está situado o perímetro urbano de Antônio Carlos, nosso avô adquiriu propriedade plana, adaptada à agricultura. Era cortada pelo rio Biguaçu, em cujas margens primeiro construiu casa de madeira para colocar os 10 filhos e, logo depois, uma casa grande de alvenaria, com seis quartos, grande cozinha em cuja parede construiu forno e fogão à lenha. Foi inaugurada em 1929 e, felizmente, ainda está conservada. Nós morávamos “no outro lado do rio”.

Aos 17 anos nosso pai sofreu osteomielite, com chaga dolorosa na tíbia da perna esquerda. Sem outro tratamento que a paciência na dor, por meses ficou acamado com dores atrozes e aprendendo a viver com dor. De fato, nosso pai sabia viver com dor e gostaria que os outros também o soubessem. Como estava ainda em fase de crescimento, esse osso não cresceu e nosso pai mancava. Num dia se levantou, reiniciou a trabalhar na dura lida da roça, da criação de gado e de suínos e ninguém se lembrou mais da doença, nem o pai. Para susto nosso e, especialmente, dele, quando completou 60 anos, adoeceu. Teve de aceitar ir ao médico. Ao revelar que sentia dor na perna, o doutor pediu que levantasse a perna da calça. Para humilhação sua, nosso pai teve que revelar um segredo tão bem guardado que nem a esposa conhecia: lá estava a chaga da osteomielite que tinha propagado a infecção ao seu redor. Ficou internado no Hospital de Caridade e conseguiu recuperar através de cirurgia. Quando perguntamos ao pai por que escondera a ferida, respondeu com simplicidade que não queria incomodar ninguém: se fosse câncer, morreria com o segredo e, se fosse doença incurável, não seria bom deixar a família preocupada. E assim, durante décadas fez diariamente o curativo, pois o trabalho na lavoura, coices de animais machucavam a úlcera. O pai aprendeu a conviver com essa dor até os últimos dias.

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Nosso pai com a família na profissão religiosa de Maria, em 1967. Ao lado dela, Olívia, nova mãe

Artulino e Lúcia e oito filhos

O pai desejou constituir família e encontrou moça de boa família: Lúcia Pauli, nossa mãe. Ele tinha 26 anos, ela 29. Nossa mãe fora interna do Colégio Coração de Jesus, em Florianópolis, pois pensava na vida religiosa e nesse caminho trabalhou no Hospital de Caridade. Num dia, para surpresa de Irmã Bernadete, revelou que não queria mais ser irmã, pois desejava se casar para ter uma filha freira e um filho padre. O casamento foi em 7 de setembro de 1946. E começaram a nascer as crianças: entre 1947 e 1959 nasceram Maria, Nesir Madalena, José, Cecília, Inês, Ivone, Pedro e Sebastião. Todos em casa.

Além desses filhos, o pai e a mãe cuidavam da vovó Catarina, alemã de antiga cepa, a ponto de não falar português para não se rebaixar, mulher forte e rigorosa que exigia o milagre de nosso silêncio. Na pequena igreja do Sagrado Coração de Jesus, o último banco era dela, e somente dela, a majestosa Catarina com seu livrinho de orações. Quando o Pe. Roberto pediu orações para que chovesse, ela foi à sacristia dizer-lhe que para chover não se reza, pois Deus colocou uma lei no tempo. Deus a chamou em 1957. Lembro do padre que foi chamado para o último sacramento: vó Catarina participou das orações e ao responder o Amém final, apagou-se. Como sempre, a última palavra foi dela.

Nosso pai era homem do trabalho, fazia do trabalho, qualquer trabalho, seu divertimento. Seu dia tinha início às 4h da manhã com a moagem da cana e era encerrado pelas 21h., com o último trato para o gado. Ele e mãe ordenhavam as vacas de manhã e à noitinha, num ritual nunca interrompido. Com os anos, Maria, Nesir, Cecília, Inês e Ivone aprenderam o ofício. O pai gostava de ter as coisas no lugar: tinha-se certeza de onde estavam as chaves, enxada, foice, os instrumentos de trabalho. Não nos dava sossego e não adiantava fazer as coisas mais ligeiro, pois haveria novo trabalho. A cada idade, os seus trabalhos. Ele gostava de repetir que trabalho era divertimento, e divertimento, como futebol, era castigo. Assim pensava e nos obrigava a agir assim. Claro que em nossa família nunca se discutiu com os pais e nunca se respondeu às suas palavras. O respeito era natural.

A terra era a paixão do pai Artulino: gostava de ter tudo limpo, capinado, as cercas conservadas, nada de matagal ou pastagem com erva daninha. Parecia até que o dinheiro que a terra lhe dava era para enfeitá-la, acariciá-la, ter uma propriedade bonita. E repetia que terra se compra, terra não se vende, o que seguiu à risca.

Os filhos se preparam para a vida

No início, o pai achava que mulher que estudava não servia para o casamento, pois iria querer moleza e não obedecer ao marido. Felizmente o passar do tempo fê-lo pensar diferente, e nem sei por que. A verdade é que dos oito filhos, sete cursaram a Universidade. E sem moleza: às 5h., minhas irmãs pegavam o ônibus para Florianópolis, chegavam após o almoço, e iam direto para a roça, pois para o estudo tinha a noite.

Mesmo com tanto serviço e necessidade de mão-de-obra, pai e mãe não se opuseram a que Maria e Nesir fossem para o Convento e eu para o Seminário. No seu tempo, cumpriu-se o desejo de mãe Lúcia: Maria é irmã religiosa e missionária na Bahia e eu sou padre. Quando vínhamos para as férias, o pai ficava contente: pedia que trocássemos de roupa e fôssemos trabalhar. Os assuntos de Seminário e de Convento eram para depois, que mãe tinha tempo para ouvir.

A divisão de competências também se dava no campo religioso: a mãe nos ensinava as orações, um bocado delas para serem memorizadas, era dela o ofício de escutar o sermão e os avisos do padre. Em comum, no fim do dia, de joelhos, a oração do rosário misturada com cansaço e sono. Para a Missa, mãe ia na frente, após o segundo sinal e pai, pontualmente saía após o terceiro sinal, sempre chegando tarde, pois havia algum servicinho a ser feito. Não havia domingo sem Missa. Quando um irmão disse que não iria mais à Missa, pai foi claro: “então deixa de ser meu filho”. Bastou falar uma vez.

Num dia de inverno do ano de 1964, mãe estava acamada. Doença no mundo rural era complicado, pois o colono não tinha direito a nada, a não ser se encontrasse vaga na enfermaria de algum hospital, recebendo um tratamento que, por ser caridade, era descuidado: alguns médicos olhavam por cima e receitavam o possível. Mãe Lúcia foi internada, primeiro no Hospital de Caridade e depois na Casa de Saúde São Sebastião, na área particular (paga). Mãe estava acamada, preocupada com a doença e as despesas. Pai tinha recebido o pagamento de uma safra de mel de cana, aproximou-se e colocou o dinheiro nas mãos de mãe: “olha, Lúcia, é tudo teu, para teu tratamento”. Eram dois pobrezinhos se enganando, porque ambos sabiam que mãe sofria de leucemia e que a morte era questão de tempo. Em 25 de novembro daquele ano, pai chegou em casa ao anoitecer, pediu a minha irmã Maria que arrumasse a roupa de mãe e retornou à Florianópolis para assistir a sua morte. No meio daquela desventura, diante dos oito filhos nosso pai, com 44 anos de idade, não podia desanimar. Após o sepultamento de mãe, nos falou: “vamos para casa, que pai vai fazer o almoço”.

Agora que mãe Lúcia estava no céu, pai Artulino teve de assumir os encargos religiosos dela: rezar, e rezar muito. No primeiro mês da morte de mãe, dormi no quarto dele e pude constatar que após um dia de trabalho, cansado, machucado, se ajoelhava e rezava longamente. Era preciso.

A vida sempre renasce

O pai sempre olhou o que tinha, não o que perdia, e ficava contente: “perdi a esposa, mas ficaram os filhos”. Era sua natureza ver o lado bom de tudo, e irritar-se bastante quando se reclamava da vida. Pai trabalhava na roça, sabia cozinhar, fazer pão, costurar e foi ensinando os ofícios às minhas irmãs.

Mas, ele tinha consciência de que não poderia educar os filhos e tocar os trabalhos. Necessitava de uma companheira. Procurou-a sem pressa, pois os filhos estavam em jogo. Sabendo que em Lages havia uma moça conhecida da juventude, pois era de família de Antônio Carlos, para lá se dirigiu no mês de dezembro de dois anos depois.. Era Olívia Koch, prima de nossa mãe, ex-juvenista e enfermeira. Com pressa, pois tinha passagem de volta marcada, pai perguntou se aceitaria o casamento e ela respondeu que sim. Ato contínuo, marcaram o casamento para o mês de janeiro seguinte. Assustado pelo que tinha feito, o pai rezou muito e foi abençoado: encontrou uma esposa verdadeira, nós ganhamos uma mãe verdadeira e recebemos dois irmãos: Claudemir e Marcos Aurélio.

A vida continuou na fé, na alegria, no trabalho. Deus abençoou o pai, sempre. Na manhã de Natal de 2001, o pai sofreu um AVC e foi encaminhado ao Hospital. Pelas 10h levei-lhe a Comunhão, falei que estávamos todos unidos e vi que seus olhos ficaram marejados de lágrimas. A família era seu prazer. Nos dias seguintes, progressivamente sua mente se apagava, teve olhos para ver os filhos que se reuniam ao seu redor, a filha Maria que chegara do Ceará, Sebastião, de Curitiba. Depois, a luz se apagava em sua memória e dentro dele brilhava forte a Luz da eternidade. Era o dia 1º. de janeiro de 2002 quando pai morreu, aos 82 anos. Tudo foi sereno, tudo foi ação de graças. Nosso pai e nossa mãe foram um grande dom que Deus nos tinha concedido e que agora devolvíamos, profundamente agradecidos.

Pe. José Artulino Besen

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HÁ 50 ANOS, DESPEDIDA DE NOSSA MÃE LÚCIA

1964 - 25 de novembro - 2014 - Encomendação e Despedida de nossa mãe

1964 – 25 de novembro – 2014 – Encomendação e Despedida de nossa mãe

Não creio que haja diálogo mais doloroso do que esse, em 29 de novembro de 1964, quando Pe. Osmar Müller me perguntou: – “Então sua mãezinha morreu, não é mesmo?” Só lembro que fiquei muito envergonhado, pois os soluços não me deixaram falar. Senti-me o adolescente mais infeliz do mundo e na pior idade para ouvir essa pergunta afirmativa.

Era verdade: três dias antes, na igreja matriz de Antônio Carlos, ainda sem reboco, estávamos reunidos meu pai, e meus irmãos Maria, Nesir, eu, Cecília, Inês, Ivone, Pedro e Sebastião. Esse último, o caçula, estava com seis anos e Maria, a mais velha, com 17. Imenso e tranqüilo, como a nos envolver num único abraço, meu pai Artulino: 44 anos de idade e 8 filhos para criar e educar. Não era imenso, mas parecia ser, pois era nosso único refúgio humano. Tranquilo, sim, pois não tinha oportunidade para expressar dramas. Lembro o momento mais belo – na extrema dor há muita beleza –, na hora da Consagração, quando o coral cantava o hino “Mais perto do meu Deus, ó Pai do céu, em dura provação, e tentação. Quando em pavor gemer, hei de fiel dizer: mais perto do meu Deus, ó Pai do céu!”. Ouvi-lo foi tão doloroso que cuidei para nem ao menos suspirar, assim prejudicando a beleza pungente desse canto de fé cantado nos últimos momentos do naufrágio do Titanic, em 1912. Tantas vezes o tinha cantado e escutado, mas somente nesse momento ouvi-o de verdade.

No meio de meus irmãos, tios, primos, povo, Pe. Alfredo Junckes, ao lado do cadáver de Lúcia Pauli Besen, minha mãe, senti-me vítima de divina injustiça na provação e na tentação. E me fiz a pergunta idiota que daí para frente escuto, e já são 50 anos: “Por que nós?” Tempos depois penso que faria uma afirmação mais equilibrada, porque a convivência com a dor nos torna misericordiosos: “Felizmente nós, e não os outros”. Missa terminada, o sepultamento, no antigo cemitério, ao lado da igreja. Passava das 11 horas de um dia de muito calor. O povo, generoso com sua presença, olhava-nos com ternura e solidão, porque nada podia fazer, e se retirava. Recordo que Ivone chorava desconsolada e pedi que parasse, pois não ficava bem. Estética das lágrimas num adolescente que guardou-as para derramá-las nas décadas seguintes, aumentadas com a morte de meu pai e do caçula Sebastião, que morreu aos 47 anos, mesma idade daquela que sepultávamos.

Na véspera, 25 de novembro, ao desembarcar em Biguaçu, mal informado, perguntei ao motorista: “E como está a mãe?” A resposta foi seca: “Já morreu nessa madrugada”. Passados 50 anos, acho que foi a melhor resposta, unindo perfeita dor com perfeita verdade, sem encantamentos que eventualmente poderiam postergar a dor, não suprimi-la. E eu tive uma certeza: não temos mais mãe.

Agora já estava sepultada, numa carneira, e nos foi dado o consolo de não escutar a música fúnebre das tradicionais pazadas de barro, cadenciadas ao ritmo do choro. E meu pai falou: “Filhos, vamos para casa, que o pai vai preparar o almoço”. O pai não teve tempo para lamentos, as oito bocas pediam comida.

A noite que antecedeu o enterro e a tarde que seguiu foram os tempos mais longos de minha vida. Tinha o sentimento de que o tempo voava, mas é porque estava parado. Aproveitei e escrevi carta para Mons. Valentim Loch, reitor do seminário de Azambuja, onde estava internado. Ignoro os caminhos, mas parou com minha irmã Nesir que a guardou, mostrou-me, mas não li. É um cofre que vela os sentimentos daquela tarde há 50 anos, e acho que não fica bem violá-los.

Antigas recordações que não envelhecem

Lúcia Pauli Besen - nossa mãe

Lúcia Pauli Besen – nossa mãe

Lúcia, nossa mãe, nasceu em Antônio Carlos em 12 de setembro de 1917. Bárbara, sua irmã, ingressou no convento das Irmãs da Divina Providência em Florianópolis. Pouco depois, ela também teve autorização para segui-la, o que lhe deu o privilégio de estudar no Colégio Coração de Jesus, assim aprendendo a falar em português. Era postulante devota quando se dirigiu à Irmã Bernadete: “Irmã, quero deixar o convento”. Diante do susto da formadora, afirmou com segurança: “Quero me casar para ter uma filha freira e um filho padre”. Saiu, e conseguiu trabalho no Hospital de Caridade onde, pela competência e dedicação, mereceu ir para o centro cirúrgico como instrumentadora do Dr. Richard Gottsmann, que nela apreciava a atenção, a rapidez e o falar alemão. Não engane o nome “Gottsmann” – homem de Deus, porque era ateu devoto. Minha mãe, ingênua, queria convertê-lo para salvar-lhe a alma e Herr Doktor sempre repetia: “Já viu alma na barriga de alguém?” Em sua ânsia missionária teve de se haver com três alemães: Moellmann, Gottsmann, Freusberg.

O tempo passou, e lembrou a promessa de ter uma filha freira e um filho padre. Retornou à família e, em 7 de setembro de 1946, contraiu matrimônio com Artulino Besen. Os filhos foram aparecendo até o oitavo, em 1959. Hoje ainda recordo como nossa mãe dava conta do serviço: o lar, os filhos, nossa avó Catarina sempre doente, o quintal, as galinhas, tirar leite, cozinhar, fazer pão, aplicar injeções nos vizinhos, costurar toda a roupa da família, remendar as usadas, rezar e cantar. Rezar. E como minha mãe rezava. As Irmãs tinham-lhe ensinado o medo do pecado, mas não lhe lembraram a alegria de não pecar. Escrupulosa, num dia confessou-se duas vezes, para ter certeza, e sempre em alemão, para ter mais certeza ainda. Grande prazer de minha mãe era escutar notícias de outros países e depois conferi-las num Atlas geográfico, pois a palavra “estrangeiro” nela despertava emoções revividas olhando mapas.

Os filhos foram a alegria que o Senhor lhe concedeu nessa vida. E cuidou de nossa vida espiritual com zelo. Ao anoitecer, tirava-nos da cama para “tomar” nossas orações, primeiro para decorarmos e depois para rezarmos: Pai-nosso, Ave-Maria, Creio, Salve Rainha, as duas Consagrações e um bocado de Jaculatórias. Mesmo com tanto trabalho, permitiu aos três mais velhos estudarem fora, buscando a vida religiosa. E cumpriu a promessa: Maria, a primeira filha, tornou-se religiosa e missionária, hoje na Bahia. E ao mais velho, competia ser padre.

Lembro com muita nitidez da imagem que se formou em minha mente na hora em que o motorista disse: “Já morreu de madrugada”. À beira da BR 101, abandonado até pela solidão, a imagem que se formou em minha mente foi um flash: eu estava rezando a Primeira Missa sem a presença de minha mãe. E, daí em diante, tive que tomar a decisão vocacional sem o anteparo de alegrá-la.

No dia de Finados de 1964, quem conta é minha irmã Maria, nossa mãe falou, da porta da cozinha, olhando para o cemitério: “Este Mês estarei lá”. Foi a profecia. Meio século passado, neste 2 de novembro lembro tudo isso e pela primeira vez compartilho, por causa dela e de meu pai e meus irmãos. Nenhum de nós duvida de sua ressurreição.

Pe. José Artulino Besen

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SÍNODO DOS BISPOS – MATRIMÔNIO E MISERICÓRDIA

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Na Festa da Exaltação da Santa Cruz, 14 de setembro, papa Francisco presidiu a Missa na Basílica de São Pedro e abençoou o casamento de 20 casais, alguns jovens, outros mais vividos, alguns já acompanhados de filhos. Esses últimos são o lado vistoso de nossa vida paroquial, cuja celebração chamamos de “legalização do matrimônio”. Papa Francisco, que deve ter presidido a centenas dessas “legalizações” nas periferias de Buenos Aires, festejou a todos. Mais um sinal de que o Papa quer a Igreja católica mais aberta e inclusiva.

Podemos ligar essa Celebração à 3ª. Assembléia Geral Extraordinária dos Bispos sobre a Família, a realizar-se no Vaticano de 5 a 19 de outubro. O 253 participantes, provenientes dos cinco Continentes, incluindo cardeais, bispos, casais, especialistas, religiosos refletirão sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”.

O tema família é central na vida humana, na vida da Igreja, e a família cristã é uma das mais atingidas pela revolução de costumes das últimas três décadas. Hoje, a família é desafiada por outras vivências humanas, como casais sem filhos, casais separados, casais em segunda, terceira união, crianças somente com pai, ou somente com mãe, casais homossexuais, alguns adotando filhos, casamentos provisórios etc., numa diversidade que pode nos assustar, mas nos obriga ao acolhimento misericordioso. Vetos e condenações facilitam a ação pastoral e nos deixam com a consciência do dever comprido, mesmo ao preço de afastar muita gente da Igreja. Lembro de um padre, zeloso, bem intencionado, que declarou a uma senhora em segunda união: “A senhora está em pecado mortal, porque vive em situação de prostituição”. O padre apenas esqueceu de olhar a criança que ela carregava no colo, e outro já andando: ela era mãe!

Voltemos ao Sínodo: está sendo a oportunidade de revelar uma realidade desagradável: a oposição ao Papa Francisco e à sua vivência como Bispo de Roma desde que fixou residência na Casa Santa Marta, símbolo da Igreja acessível, pobre, que sai dos seus palácios, dos âmbitos psicológicos tradicionais: para católicos e bispos tradicionais, isso foge do mundo eclesiástico europeu e italiano, arquivado pela eleição de um bispo argentino. Francisco não é eurocêntrico, e nenhuma doutrina coloca a Europa como modelo para a Igreja. Em particular, algum cardeal já afirma que “o modelo latino-americano não funciona aqui na Europa”, esquecendo que a recíproca é justa: “o modelo europeu também não funciona no Terceiro Mundo”. Não é esse o problema verdadeiro, e sim, a palavra que Francisco propõe: uma Igreja pobre, com os pobres, acolhedora, misericordiosa. Esse é o caminho pastoral dele: lavar os pés de todos, acolher os migrantes, ter cheiro de pobre. Suas viagens não foram para a Europa rica, e sim, para os que estão longe: América latina-Brasil, Lampedusa-migrantes, Ásia-Coréia do Sul, Europa-Albânia.

É compreensível que haja descontentamento com as escolhas de Francisco, pois o fato de morar na Casa Santa Marta permite que tenha contato direto com pessoas sem a intermediação da poderosa Cúria no Palácio Apostólico; atacando o carreirismo como câncer da Igreja, rejeita uma elite que passa a vida em Roma; abandonando os rituais principescos, estimula que padres e bispos façam o mesmo; a bela e despojada Liturgia dele contrasta com os enfeites e suntuosidades de certos padres e bispos; tratando cada diocese como Igreja apostólica, desconsidera as tradicionais sedes cardinalícias que envenenaram a vida pastoral de bispos em busca de sedes “importantes”. A reforma corajosa das finanças do Vaticano dá credibilidade à Santa Sé, o rigor no tratamento dos casos de abuso de menores revela a face de uma Igreja que pede perdão, e a reforma da Cúria romana, em andamento, significará um novo tempo na condução da vida da Igreja. Enfim, Bergoglio foi eleito pelos cardeais porque nele enxergaram a pessoa para orientar uma Igreja voltada para si mesma numa Igreja missionária, voltada para o serviço do mundo, conforme pediu o Vaticano II.

Permanecer na verdade e na misericórdia

Causou espécie no mundo católico a publicação do livro “Permanecer na verdade de Cristo: Matrimônio e comunhão na Igreja católica”, assinado por 5 cardeais e claramente dirigido a atacar o cardeal Walter Kasper, cujas posições sobre o Matrimônio são bem consideradas pelo Papa. É um muro conservador que se ergue, claramente atingindo o Papa através do Cardeal, e se situa na hostilidade às propostas de renovação pastoral a serem discutidas no Sínodo. Como compreender a atitude de purpurados opondo-se a um caminho que Francisco iniciou consultando todos os bispos do mundo, que será proposto na Assembléia sinodal de outubro e, depois de um ano, em novo Sínodo em outubro de 2015? A convite do Papa, o cardeal Kasper falou sobre a família no Consistório de fevereiro último e, na última parte de sua colocação, elogiada pelo Papa que a definiu “teologia de joelhos” que revela o “amor pela Igreja”, sugeriu como hipótese – caso por caso, em determinadas condições e depois de um caminho penitencial – a possibilidade de readmitir os divorciados recasados à comunhão.

A publicação do livro não foi elegante, nem eclesial, pois os cardeais signatários primeiro o apresentaram à imprensa e não a W. Kasper, e bem sabem da posição de Francisco e de seu respeito pelo cardeal alemão. O confronto está definido: de um lado, uma visão pastoral que não admite adequar a doutrina aos sinais dos tempos, como sempre foi feito e, de outro, Francisco: sem negar a doutrina da indissolubilidade matrimonial, considera decisiva a mensagem da misericórdia e continua a convidar a Igreja a sair de si mesma e ir ao encontro dos homens e mulheres nas condições em que vivem. Os 5 veneráveis cardeais estão receosos de que Francisco caia no erro, pois ouvindo todos os bispos pode ser “enrolado” na doutrina. O livro, assim, é uma espécie de convite a que o Papa tenha cuidado.

O sacramento do matrimônio é uma graça de Deus, falou o cardeal Kasper, e faz dos esposos um sinal de sua graça e de seu amor definitivo. Mas, também um cristão pode fracassar e, infelizmente, muitos matrimônios fracassam. Na sua fidelidade, Deus não deixa ninguém caído e, na sua misericórdia, oferece a cada um que deseja converter-se, uma nova chance. Por isso, a Igreja que é o sacramento, o sinal e instrumento da misericórdia divina, deve estar próxima, ajudar, aconselhar, encorajar. Não se podem conceder segundas núpcias, mas, segundo os Pais da Igreja, depois do naufrágio, se lança um bote salva-vidas. Não um segundo matrimônio sacramental, mas os meios sacramentais necessários na sua situação. Assim como não duvidamos que a Igreja católica é a realização mais completa do plano de Jesus, mas enxergamos nas outras Igrejas sinais de salvação, não poderíamos ver o mesmo no casamento civil em que, na fidelidade e na piedade o casal vive sua fé?

Podemos continuar com os vetos do passado, ignorando as novas situações, ficando insensíveis à realidade concreta de tantos que sofrem. Certamente, a atitude misericordiosa de tantos padres e bispos aproxima-os do sofrimento do rebanho e do exemplo de Jesus, o Bom Pastor. Importante expor a doutrina com fidelidade, mas não esquecer que a misericórdia triunfa no julgamento.

 Pe. José Artulino Besen

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