JOÃO PAULO II E A CRUZ REDENTORA

João Paulo II rezando o Rosário em Pompei (8-10-2003)

Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte de 6 de janeiro de 2001, o Papa João Paulo II nos convidava a contemplar a face de Cristo na profundidade do mistério que os Evangelhos nos revelam, de modo especial a face de Cristo Crucificado e Abandonado, no seu grito angustiante e na sua glória sem fim (nn. 16-28). Um programa para a Igreja e para cada cristão neste século que então iniciava a balbuciar.

Na Sexta-feira santa comovia ver, nas páginas dos jornais, a figura dolorosa do Papa em seus aposentos segurando e contemplando a Cruz do Senhor durante a Via Sacra no Coliseu. Dois amigos no abandono total de amor, Cristo por livre decisão por nós, o Papa por livre aceitação por si e pela Igreja. Cristo crucificado e abandonado, o Papa crucificado, mas recebendo forças do seu Senhor e Mestre. Cristo, sentado na Cruz, seu glorioso trono de amor, o Papa preso a uma cadeira de rodas, a face devastada pela dor, mas sentindo-se revigorado por aquele cujo nome gritou na Praça de São Pedro, em outubro de 1978: “Povos do mundo, não tenhais medo de Cristo!”. E este polonês escolhido para o Trono de Pedro deu provas de não ter medo de Cristo e de sua Cruz: como catequista anunciou-o nas audiências semanais das quartas-feiras; como pregador, anunciou-o no Ângelus do meio-dia de domingo; como cruzado da fé e da paz, anunciou-o em suas 104 viagens apostólicas. Anunciou-o nos numerosos documentos, sínodos, cartas, encíclicas, audiências.

O Papa prisioneiro da doença foi o evangelizador de multidões; aceitou com paciência a rotina da Cúria romana, ele que se sentia o mundo uma praça donde era pároco.

O Papa estava doente, mas sua pessoa não é uma doença. Nossa cultura é do detalhe, do pormenor mórbido e buscava no corpo do Papa sinais de doença: lentes poderosas, filmadoras indiscretas procuravam nas mãos, nos dedos, nos lábios, sinais, quem sabe, do fim. Também nós, católicos, corremos o risco de confundir a missão de Pedro com a doença de Pedro, confundir o Papa com o governo do Papa. Karol Wojtylla não era um executivo de empresa, não era o gerente do Estado do Vaticano: a Igreja é mistério, Corpo de Cristo e Povo de Deus. Transcende infinitamente a dimensão burocrática à qual queremos reduzi-la e à qual muitos burocratas eclesiásticos tentam prazerosamente resumi-la.

Na doença do Papa o Espírito que fala às Igrejas nos revelava a necessidade da dimensão colegial da unidade e nos revelava uma outra face do pontificado romano: a paternidade espiritual, a paternidade da cruz oferecida pela Igreja e pelo mundo, tão ou mais eficaz do que a inteligência humana do governo.

João Paulo II alimentou um prazer imenso de ver o povo e de ser por ele visto. Também na doença gostava de ver o rebanho aflito e por ele ser contemplado. Nas últimas semanas de vida terrena ainda apareceu na janela de seu apartamento, contemplando o “seu” povo e sendo por ele contemplado. Mas não conseguia falar: estava mudo. Nem sempre foi assim: os papas se faziam ver raramente, nunca na doença. Pio XII viveu doente 6 anos e aparecia somente quando podia passar a falsa imagem de um homem saudável. João XXIII buscou refúgio na Torre Leonina, onde os ares lhe pareciam mais saudáveis. Paulo VI recolheu-se ao silêncio para meditar o Pai-nosso à espera do dia da Transfiguração (6 de agosto).

João Paulo II, testemunha qualificada das dores humanas de todos os matizes e credos, das hecatombes do nazismo e do comunismo, que fez suas as dores do ser humano onde quer que se encontrasse, que sentiu na carne o que é ser atravessado por projéteis do terror, que sentiu a inexorabilidade da doença incurável, revelava sua face solidária e paterna com todos os sofredores do mundo.

Foi ele que insistiu na dimensão do viver a descoberta do Jesus Abandonado, como experiência de vida humana e divina e, portanto, do fazer-se um conosco e com o Pai, com todas as conseqüências: o esvaziamento de cada um de nós para o dom total de si, para ser um no amor.

Sua vida foi aplacar a sede de almas manifestada por Cristo na Cruz: Tenho sede! Com seu ministério, João Paulo procurou aplacar essa sede. E o fez com a palavra, os escritos, as viagens, com sua pessoa.

Suas últimas palavras foram profissão de fé no amor do Pai e na ressurreição: “Deixai-me ir para a Casa do Pai”!

Nesse domingo da misericórdia, abrindo o mês de Maria, Mãe amável a quem consagrou a existência, nos louvamos o Senhor pela fé católica, pedimos perdão por nossos pecados, agradecemos a Deus pelo Bem-aventurado João Paulo II.

Pe. José Artulino Besen

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