Arquivo de 4 maio, 2006

MARIA – MATERNIDADE SACRAMENTAL E ECLESIAL

(Katafyge Olympias Refuge)

(Katafyge Olympias Refuge)

Maria é modelo da Igreja e seu exemplo para a vida eclesial se manifesta no ouvir a Palavra, na oração, na maternidade divina e na oferta sacrifical (cfr. Marialis Cultus, de Paulo VI, nn. 17-20). O fundamento do modelo “mariano” para a vida eclesial está na participação real de Maria nos mistérios da vida de Cristo. Pelo Espírito Santo gerando o Filho, acompanhou-o maternalmente em toda a sua vida terrena e agora o acompanha, contemplando-o na glória trinitária.

Toda a ação sacramental da Igreja é realizada na memória de Cristo (“fazei isso em memória de mim”), que torna presentes os mistérios na força do Espírito Santo. Os sacramentos não são recordações piedosas: são acontecimentos eficazes de santificação e salvação.

A Igreja é convidada a realizá-los em atitude mariana, vivê-los e deles participar com os mesmos sentimentos de Maria na Encarnação, no Natal, na Epifania, na vida pública, na Paixão e Ressurreição, no Pentecostes. A liturgia da Igreja torna presentes, de modo real e eficaz, os mistérios da vida de Jesus e não pode dissociá-los daquela que os viveu com Ele e é a Mãe de Cristo, cabeça da Igreja. A maternidade divina de Maria é maternidade sacramental e eclesial.

Assim, Maria está presente em cada fonte batismal, onde nascem os novos membros do Corpo místico, porque concebeu seu Senhor divino, Cristo. Está presente em cada Eucaristia, pois o Filho que se faz carne e sangue para a vida do mundo é carne e sangue de seu seio virginal e participou como co-redentora do mistério de sua Morte e Ressurreição. Está presente em cada cenáculo, em cada imposição das mãos, porque esteve junto com os discípulos na Igreja nascente, recebendo a efusão do Espírito. Está presente nos sacramentos da vida cristã como esteve presente ativamente na vida de Jesus (cfr. João Paulo II, “Angelus” de 12/02/1984).

O que a Igreja hoje celebra na liturgia, Maria viveu ao lado de Jesus pelos caminhos da Galiléia, Judéia e Samaria. A liturgia celebra a pessoa e a vida de Cristo no mistério trinitário, não podendo estar separada de Maria, esposa do Espírito, mãe do Filho, filha do Pai, serva da Trindade e irmã de todos.

Por isso, toda a devoção cristã é mariana, ser mariano é ser cristão, como afirmou João Paulo II. Desta afirmação surge uma devoção a Maria com características bíblicas e sacramentais, uma devoção adulta, de compromisso, uma devoção vivida nas virtudes teologais da fé, esperança e caridade, longe, portanto, das devoções adocicadas nascidas em sentimentalismo barato ou em supostas revelações privadas.

Ser mariano é muito mais do que repetir palavras de Maria: é viver as atitudes de Maria junto de seu Filho, é ter seus sentimentos no caminho da fé cristã. A união Maria-Jesus é tão íntima que, ao afirmar com São Luiz de Montfort “Sou todo teu, Maria – Totus Tuus”, estou afirmando claramente “Como tu, Maria, sou todo de Cristo”.

Maria é grande tesouro da espiritualidade cristã e católica: se abrirmos esse cofre, contemplaremos, maravilhados, toda a sua riqueza, Cristo.

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A EUCARISTIA E A BELEZA DA HARMONIA

O martírio - experiência de morte-ressurreição - Capela de Kocevski - Eslovênia

O martírio – experiência de morte-ressurreição – Capela de Kocevski – Eslovênia

Durante seus 20 séculos de existência a Igreja tratou como seus dois tesouros a Palavra e o rito litúrgico. Surgiram famílias litúrgicas e, nelas, dezenas de ritos para expressar e celebrar o mistério pascal. A Igreja católica, em sua variedade ritual, tem no rito romano seu rito para a Igreja latina e no rito oriental, mais conhecido como a Divina Liturgia de São João Crisóstomo o rito para as Igrejas católicas orientais. A Divina Liturgia é comum à da Igreja Ortodoxa, constituindo-se numa preciosa ponte ecumênica.

O rito litúrgico pertence à Igreja e não à criatividade dos fiéis ou comunidades. Ele expressa a eterna vida divina e não a provisoriedade de nossas experiências diárias. Ele assume nosso quotidiano, é verdade, mas para divinizá-lo e mostrar sua participação da glória divina.

Uma das características do rito é a sua repetição sempre igual, dia por dia, ano por ano. O rito é sempre o mesmo, porém, a cada dia nós somos diferentes e a cada rito a Palavra de Deus proclamada é diversa, razão porque a repetição ritual não cria monotonia. Evidente que se a Palavra não é ouvida ou por distração ou por ser mal proclamada, teremos a experiência da monotonia ritual, estéril.

A Liturgia eucarística é indissociável da celebração da Liturgia da Palavra: Deus fala, nós celebramos. O mistério pascal é o mesmo, mas a extensão numérica dos séculos da história será pouco para expressar parte de sua profundidade e riqueza.

Outra característica do rito litúrgico é a sobriedade, conseqüência da simplicidade divina. O mistério leva ao fascínio e não à curiosidade. Missa enfeitada é produto de equipes de teatro e não litúrgicas. Cristo é a Palavra e não multiplicação de palavras que ocultam nossa realidade. É triste o anúncio de missas carismáticas, de descarrego, de quebra de maldição, de cura, de exorcismo, de posse de governo, de aniversário de clube, etc.: a Missa não tem adjetivo, pois a Eucaristia é sempre a celebração e memória do mistério pascal onde Deus se manifesta no silêncio e na beleza simples, sempre comunicativa. A Eucaristia jorra do lado aberto do Senhor crucificado e ressuscitado e não do farfalhar de púrpuras, brilhos de vestes litúrgicas e teatralizações cerimoniais. Muitos males provém da identificação de cerimônia com liturgia: um bom liturgista é necessariamente teólogo e um bom cerimoniário pode eventualmente ser apenas especialista em encenações. Liturgia se identifica com mistério.

A Liturgia pede a harmonia dos participantes, dos cantos, dos gestos, palavra/silêncio, das velas/flores. «O espírito tem sede de harmonia enquanto que a vida é desarmônica», afirmou o cineasta russo Andrej Tarkovskiy. Missa movimentada, agitada, rumorosa, de padre irrequieto e equipe exibicionista, «platéia» festeira abafa a harmonia de que nosso espírito tem sede: expressa a realidade da vida mas suprime a possibilidade de transfigurá-la. Não vamos à Igreja para reproduzir o barulho da rua: queremos, isto sim, trazer tudo conosco mas para entrar em comunhão com o Deus que é belo, simples, silencioso.

O fato de não nos conformarmos em viver divididos interiormente gera um movimento nascido da fé e, assim, a profundidade de nosso ser, nossas forças espirituais nos impelem a buscar a harmonia. Que não se restringe ao nível pessoal: nosso ser busca a harmonia com Deus, com o outro e com a criação. Na sua simplicidade e mistério a divina liturgia nos oferece essa sinfonia, pois o Espírito transfigura tudo o que é ofertado no Corpo do Senhor glorificado.

Ao concluirmos a celebração litúrgica, ajude-nos o Senhor a poder cantar, na verdade: «Anunciamos, Senhor, vossa morte e proclamamos vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!».

Pe. José Artulino Besen

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A LITURGIA DA IGREJA E O ANO DA GRAÇA

Cristo, o Salvador, com os Apóstolos (Fyodor-Zubov,1662)

Cristo, o Salvador, com os Apóstolos (Fyodor-Zubov,1662)

O ano da graça (cf. Lc 4, 18-19) é o tempo da salvação e da libertação, sem limite no tempo e no espaço: é a presença do próprio Cristo, Servo e Senhor, crucificado e ressuscitado, sentado à direita do Pai e enviando o Espírito Santo.

A Liturgia é a realização continuada do ano da graça: é a celebração da memória pascal, não entendida como recordação de fatos antigos mas como acontecimento atual. É a Páscoa incessantemente celebrada, sempre nova, nunca repetida. A comunidade cristã escolheu o primeiro dia da semana como Dia do Senhor por ser o dia da Páscoa. E foi além: cada dia da vida cristã é Páscoa, porque a cada dia é celebrada a Liturgia, fazendo jorrar o clarão vivificante da ressurreição sobre todos os dias da semana. Afirma Gregório de Nissa que «não existe um momento em que o cristão não celebra a Páscoa» (In Christi ress., PG 46,628CD).

Quaresma-Páscoa, Páscoa-Pentecostes

O gênio cristão teve isso presente ao estabelecer os ciclos litúrgicos e transformar o ano inteiro em Ano da Graça onde Cristo nos torna presente seu mistério. A Páscoa, e sempre é Páscoa, é precedida pelas sete semanas da Quaresma nas quais vivemos as etapas do retorno ao paraíso da nova criação. Após a Páscoa, vivemos as sete semanas de Pentecostes, nas quais aprendemos a viver em comunhão com o Senhor ressuscitado. É o tempo da Teofania (manifestação de Cristo, Verbo encarnado) e da Deificação (através do Espírito assumimos a forma do corpo glorioso do Senhor).

A Liturgia nos coloca dentro da pedagogia cristã alimentando-nos pela Palavra proclamada e celebrada. É um contínuo aprender e aceitar «quem é Cristo» e deixar-se transformar pelo Espírito. Quanto mais penetramos no mistério da Encarnação (Deus que se faz homem) mais somos transformados pelo mistério do Pentecostes (somos divinizados à imagem de Cristo). O Senhor que vem para o meio de nós é o Senhor que nos eleva ao Trono divino em cada Liturgia (cf. Fl 2, 5-11).

A pedagogia do acolhimento

O Senhor celebra sua Páscoa no meio de justos e pecadores: a Ceia incluiu Judas, a Cruz incluiu os ladrões, a Ressurreição incluiu soldados pagãos, o Pentecostes incluiu os pagãos. Apesar da clareza em saber que o Senhor vive nunca excluindo, os cristãos não estão isentos do perigo de formarem seitas, grupos sectários de eleitos orgulhosos da sua suficiente obediência à lei. Essa tentação já se manifestou na Igreja primitiva, mas com a repreensão da Igreja: «Ó bispo, não impeçais aos pecadores de entrar na igreja para ouvirem a Palavra, pois o Senhor, nosso Salvador, não afastou nem rejeitou os publicanos e pecadores, mas comeu com eles» (Didascália dos Apóstolos 2,40).

Se a Liturgia é alimento para os fracos e pecadores, por ela tornando-se fortes e santos, a vida cristã dela decorrente exige a vivência numa fraternidade onde os fracos apóiam-se nos mais fortes, os pecadores são consolados pelos mais santos. «Inclusive admitimos que existam alguns perfeitos, integralmente santos: mas não lhes é permitido viver sem os irmãos, que não devem ser rejeitados» (Otávio de Mileve, O Cisma dos Donatistas 7,2).

A Liturgia provoca em nós um movimento irreprimível de anúncio, de busca de discípulos à imagem da Encarnação: os anjos anunciam aos pastores, André anuncia a Pedro, os doentes curados anunciam aos outros doentes, as mulheres anunciam o Ressuscitado, Pedro anuncia o novo tempo de Pentecostes, a Igreja anuncia o Deus Trindade. Detendo o anúncio, esteriliza-se a Páscoa.

O pão é para os famintos, a água para os sedentos: o Pão é para os famintos de Vida, a Água viva é para os sedentos do Deus vivo.

A Igreja, virgem e prostituta

A Igreja nasce da Eucaristia, a Eucaristia é o ápice da vida da Igreja. Tamanho e fascinante mistério não nos permite esquecer que a santidade da Igreja vem de sua Cabeça, o Cristo e, nela, nossa humilde colaboração é sermos pecadores em busca de santidade. A comunidade que se reúne para celebrar a Liturgia carrega consigo os pecados pessoais e comunitários: tudo é oferecido para que tudo seja transfigurado.

Os Pais da Igreja viram no profeta Oséias a grande imagem da Igreja virgem e prostituta. «Aprendemos que a união do profeta com a prostituta indica que a ignorância dos gentios se une com o ensinamento dos profetas e que seus filhos não serão mais chamados de não-amados, mas de amados, povo ao invés de não-povo, filhos de Deus em lugar de filhos de prostituta» (Hilário de Poitiers, Tratado sobre os Mistérios 2,1-2.4). Agostinho, pecador tocado pela graça: «O esposo encontrou a Igreja que era prostituta e a tornou virgem. Não deve renegar ter sido uma prostituta a fim de que não seja negada a misericórdia do libertador » (Discurso 213,8).

Cada um de nós, cristãos, deve enxergar-se na prostituta que lava os pés do Salvador com as lágrimas e enxuga-os com os cabelos. Membros da Igreja, como ela esperamos ouvir do Senhor: Teus pecados estão perdoados (Lc 7,48).

A Igreja Povo de Deus celebra a Liturgia não como festa de santos e sim como a festa de pecadores que têm a certeza do acolhimento do Pai, no Filho e pelo Espírito Santo. É confortador sentirmos que vamos participar da Eucaristia como uma prostituta descartada, nua e dela saímos puros, cobertos com uma veste limpa dada pelo Senhor.

Com a mesma alegria das primeiras comunidades cristãs, então cantamos: «Venha a graça e passe este mundo! Hosana ao Deus de Davi! Se um é santo, venha! Se um não é, converta-se! Maranatha. Amém!» (Didaqué 10, 5-6).

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